Aracy Menezes Machado

Memória viva de uma cidade que se agigantou

Aracy Menezes Machado chegou quando ambas, ela e Goiânia, eram meninas. “Vi muita coisa acontecer aqui”, disse, na casa onde mora há sete década

A Rua 75, no antigo Bairro Popular, uma das gêneses urbanas da capital goiana, tem história. E dona Aracy Menezes Machado, 90 anos, moradora do lugar há mais de sete décadas, sabe e participou de boa parte delas. “Já vi muita coisa acontecer aqui. E essa rua mudou demais”, testemunha. A rua, o bairro, a cidade como um todo. “Antigamente havia muitas carroças e não carros. Hoje é uma loucura. Essa rua aqui era tranquila, agora é carro que não acaba mais. Um movimento enorme”, compara. Lúcida, a memória de dona Aracy é um tesouro preservado.

“Eu e minha família viemos da cidade de Conquista, Minas Gerais, quando eu tinha 14 anos. Chegamos aqui em 1942, no ano do Batismo Cultural de Goiânia”, recorda. “Nós éramos seis irmãos, quatro mulheres e dois homens. Minha irmã mais velha veio na frente, com a madrinha dela, e depois mandou chamar meu pai, porque aqui era uma terra de oportunidades. Estava tudo sendo construído ainda. Primeiro, moramos dois anos em Campinas. Só depois viemos para cá. E aqui eu passei minha juventude, casei, tive meus filhos e moro até hoje”, relata.

Dona Aracy é uma senhora que não aparenta a idade que tem. Jovial e ágil, cuida sozinha da casa onde mora há décadas, aguando um sem número de vasos com plantas, zelando de uma decoração cheia de detalhes – com imagens religiosas e quadros –, administrando os alugueis de imóveis no fundo do amplo lote, onde antes existiu uma horta. “Esta casa aqui já foi muito modificada. Aqui na rua quase não tem mais imóvel original.” Na época em que se mudou, a vizinha Escola Técnica Federal (atual IFG) acabara de ser inaugurada e a rua, de terra, tinha poucas casas, sem muros.

A paisagem urbana nos arredores de sua residência passou por transformações intensas. “Quando a gente chegou, aqui era quase o final de Goiânia. A cidade ia da Praça Cívica ao Bosque dos Buritis, descendo até a Estação Ferroviária e terminava aqui no Córrego Botafogo. Depois não tinha mais nada. Não tinha Setor Universitário, não tinha Vila Nova. A gente atravessava o Botafogo numa pontezinha de madeira.” Ela mesma parece incrédula diante de tantas mudanças. “Aqui do lado, o Colégio Santo Agostinho era cercado por arame. Tudo completamente diferente.”

A vida de dona Aracy e de Goiânia se confundem em muitos momentos. As dinâmicas de uma jovem capital, com seu ar romântico e bucólico dos anos 1940 e 1950, misturam-se com episódios que desenharam a trajetória desta pioneira. “A gente ia passear na Avenida Goiás, na frente do Grande Hotel. Homens de um lado da calçada, mulheres do outro. Ali é que aconteciam os namoros”, conta. E foi ali que começou o seu, com o futuro marido Sebastião Machado. “A gente havia se conhecido numa festa na casa de um sargento do Tiro de Guerra, que ficava aqui na rua.”
Passeio vai, passeio vem, os dois resolveram se casar no final daquele 1947. “Ele havia chegado a Goiânia para trabalhar com Jaime Câmara, depois que o jornal da família foi transferido para cá. Ele era tipógrafo.” Para alcançar a nova capital, Sebastião, que era arrimo de família e ficara desempregado com a transferência da sede do poder estadual, envolveu-se numa aventura. “Ele pegou um cavalo emprestado para vir para cá, mas no caminho o cavalo fugiu. Teve que arranjar outro jeito de chegar. Demorou dois dias entre a cidade de Goiás e Goiânia.”

Ao se casar, Aracy precisou se adequar às normas sociais do final dos anos 1940, época em que o espaço das mulheres era restrito na vida social. “Eu trabalhava, mas tive que largar. O marido não deixava. Naquela época tinha disso, acredita?” Ela havia sido datilógrafa em um jornal, trabalhara na unidade das Lojas Pernambucanas que existia em Campinas e foi até funcionária de uma fábrica de massas que fora instalada pela família Lisita, um dos primeiros clãs de origem italiana a chegar a Goiânia, na Rua 70, no Centro. “Uma das primeiras indústrias que Goiânia teve”, acrescenta.

A simpática senhora ainda dá suas voltas pelo Centro. Vai ao Mercado da Rua 74, onde é freguesa desde os seus primeiros anos de funcionamento. Também faz supermercado, não muito longe da Igreja Coração de Maria, na Avenida Paranaíba, onde na sua juventude ia assistir à missa das 9 horas aos domingos. “Todo mundo me conhece aqui. Na verdade, o pessoal que está aqui hoje já é a terceira, a quarta geração dos moradores originais. Das pessoas daquela época que cheguei, acho que só resta eu. Todo mundo já morreu ou se mudou”, contabiliza.

Dona Aracy já não tem a vizinhança com quem ficava conversando à noite na porta de casa, sem qualquer preocupação. “Não dá mais para fazer isso. Hoje as casas estão todas trancadas com cadeado.” Dona Aracy também já não pede um pouco de lenha ao vizinho para acender o fogão e fazer o almoço, como tantas vezes fez. “O pessoal pegava essa madeira aqui perto, onde era tudo mato.” Dona Aracy já não ouve os exercícios do Tiro de Guerra, que ficava nas proximidades de onde está o Parque Mutirama. “O pessoal praticava tiro ali mesmo, no meio da rua. Já pensaram?”

Setenta e seis anos após chegar à nova capital – “Viemos de trem. Pegamos em Uberaba e viemos até Leopoldo de Bulhões. De lá, viemos uma jardineira até aqui. Só tinha essa estrada” –, Dona Aracy ama a cidade que escolheu para viver. “Eu viajo bastante, mas adoro quando volto. Aqui é quente sim, mas é um calor que aquece a alma”, brinca. As rugas que traz no rosto – “são os sinais de que vivi”, resume – foram todas adquiridas nesta Goiânia que ela conheceu quando ambas eram meninas, ela e a cidade. A mesma cidade que Aracy e sua família ajudaram a desenhar.

Expediente

Edição Multiplataforma
Silvana Bittencout, Fabrício Cardoso, Rodrigo Alves e Michel Victor Queiroz

Reportagem
Rogério Borges

Edição de fotografia
Weimer Carvalho

Arte
André Luiz Rodrigues

Design
Marco Aurélio Soares

Audiovisual
Carmem Curti
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