Dona Gercina

As muitas faces de uma mulher no seio do poder

Lembrada como “esposa de Pedro Ludovico”, Dona Gercina não foi uma primeira-dama protocolar. 
Ela teve participação ativa na construção da capital

Quando se conta a história de Goiânia, é natural que o relato comece por sua fundação – e por seu fundador. Político personalista, Pedro Ludovico Teixeira é uma espécie de encarnação da nova capital que idealizou e conseguiu construir. Há, porém, uma pessoa que teve intensa participação neste processo e que muitas vezes é relegada a uma posição secundária. Eis uma injustiça. Sem a esposa Dona Gercina Borges Teixeira, Pedro Ludovico talvez sequer tivesse ingressado na política. Sem ela, Goiânia teria encontrado ainda mais dificuldades para se firmar como sede do poder.
Filha do senador estadual Antônio Martins Borges, Gercina nasceu em 1900 em Rio Verde. Ao contrário da maioria das moças de seu tempo, ela optou por ter uma formação, tornando-se professora após um período de estudos no interior paulista. Segundo a biógrafa Esther Barbosa Oriente, que escreveu Dona Gercina – Mãe dos Pobres, foi no ano em que retornou a Rio Verde (1917) que ela conheceu seu futuro marido. “No dia 14 de julho, chegou a Rio Verde o jovem médico Pedro Ludovico Teixeira, de quem D. Gercina se enamorou, casando-se no ano seguinte.”

Natural da cidade de Goiás, Pedro Ludovico não tinha, até então, relevância na política. Depois de estudar medicina no Rio de Janeiro, o fundador de Goiânia buscava espaço profissional em sua área. O ingresso nas esferas do poder se deu justamente por conta do casamento, uma vez que o pai de Gercina tinha grande influência na região. Ele passou a apostar no genro, o que mostrou-se uma previsão acertada. Quando eclodiu a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas subindo ao poder e a Velha República declinando, ocorreu uma reviravolta.

Pedro Ludovico, 12 anos após o casamento com Gercina, já era uma liderança regional e coube a ele se opor às oligarquias. Efetivado como interventor, Pedro começaria a colocar em prática o plano de retirar o poder político da cidade de Goiás. Uma meta que teve em Dona Gercina uma aliada de primeira hora. Nascida em uma família chefiada por um político, ela sabia até melhor que o marido como se davam as questões nesta área e foi uma conselheira constante, fazendo-o mudar de opinião em diversas ocasiões.

Em depoimento ao livro de Esther Oriente, uma das filhas do casal, Lívia Teixeira Bahia, declarou que a mãe “foi o braço forte da família, que acatava sua opinião, válida em todos os momentos”. Católica fervorosa, é creditada a ela a versão de que o traçado central das ruas de Goiânia seria uma referência ao manto de Nossa Senhora. Pesquisas revelam que essa versão foi difundida à revelia do urbanista que desenhou o projeto, Attilio Correa Lima, que na verdade foi influenciado por modelos de cidades francesas em voga na época para conceber o projeto da nova capital goiana.
Essa atuação se fez sentir em muitas outras partes. 

A biografia de Dona Gercina informa que ela, ao se mudar para a nova capital, em 1935, deu uma nova dimensão à sua participação como primeira-dama, ganhando protagonismo, sobretudo nas causas sociais. “Em 1936, juntamente com a Irmandade de São Vicente de Paulo, da qual era presidente, teve a ideia de fundar a Santa Casa em Goiânia”, escreve Esther Oriente. Para isso, ela promovia encontros com a alta sociedade, promovia eventos beneficentes e até pediu recursos pessoalmente ao então presidente Getúlio Vargas.

Dona Gercina também foi a primeira presidente da Legião Brasileira de Assistência (LBA) em Goiás, que desenvolvia trabalhos de caridade e ajuda aos mais pobres. Essa foi sua bandeira, atendendo áreas a que poucas pessoas davam atenção. Na Santa Casa, por exemplo, apoiou a criação de um serviço funerário para quem não podia pagar. Também incentivou cursos profissionalizantes e foi uma defensora da construção de moradias populares, apelidada de Vila dos Pobres, para atender pessoas que habitavam em condições insalubres na cidade.

Também fundadora da Organização das Voluntárias de Goiás (OVG), Dona Gercina ligava seus trabalhos assistenciais à imagem pública das gestões do marido. Mas também costurava acordos políticos. Um convite seu era irrecusável, mesmo que se tratasse de alguém que tivesse divergências com Pedro Ludovico e, depois, com seu filho Mauro Borges, que foi, como o pai, governador do Estado. Em algumas ocasiões, ela viabilizou encontros que ajudaram a moldar as forças políticas, firmar alianças e aparar arestas.

Quando se fala em Mãe dos Pobres ou “esposa de Pedro Ludovico”, fica a impressão de que Dona Gercina atendia ao modelo de submissão a que a mulher era tantas vezes relegada naqueles tempos. Essa imagem não é correta. Se a mulher que deu os traços que vigoram até hoje sobre a atuação de primeiras-damas em Goiás não chegava a ser uma feminista, ela está distante de ser uma figura passiva, que apenas cumpria as determinações do marido poderoso. A união dos dois, além de seis filhos, deu ao casal um tipo de comunhão que extrapolava o matrimônio e a vida conjugal.
Soube fazer política tanto quanto o marido
Gercina despertava especial simpatia entre a parcela mais pobre da população, atributos simbólicos que até hoje são reconhecidos

Dona Gercina se correspondia com a primeira-dama Darci Vargas nos tempos do governo Getúlio. Era uma pessoa de iniciativa própria, contemplando áreas que costumavam ser negligenciadas. Boa parte do apoio popular que Pedro Ludovico angariou em suas gestões à frente do Estado era devida à figura carismática e discreta de sua esposa. Ela sabia fazer política tanto quanto o marido. Conquistava, principalmente entre a parcela mais pobre da população, dividendos simbólicos que até hoje são reconhecidos.

Associada à mudança da capital, a figura de Dona Gercina ajudou a superar resistências e conquistou a simpatia de setores religiosos e sociais para os planos de Pedro Ludovico, sobretudo em seu início. Se ele era centralizador, ela conseguia fazer o contraponto, buscando apoio de figuras estratégicas e formadores de opinião.

Pedro reconhecia essa dívida que tinha com a esposa. Ele se aconselhava com Gercina antes de tomar decisões relevantes. E mesmo em momentos dramáticos, como a deposição de Mauro Borges do governo em 1964, ela permaneceu serena e firme. 

Doente, ela se refugiou no casarão que hoje é o Museu Pedro Ludovico, situado na rua que foi batizada com o nome da ex-primeira-dama. 

Em novembro de 1976 ela chegou ao fim da vida após passar por vitórias – era ainda adorada por parte da população – e traumas – ela perdeu um de seus filhos, Antônio, em 1952, em um desastre de avião. Também havia suportado a perseguição política sofrida por seu marido e filho. Um texto do jornalista Hélio Rocha para O POPULAR atesta que até o fim, fazia questão de receber a comunhão em casa.

Curiosidades
O salão principal do Palácio das Esmeraldas, sede do governo goiano, se chama Dona Gercina Borges. Um quadro que a retrata decora o espaço, usado, sobretudo, para cerimônias especiais, principalmente ligadas ao mundo cultural.

No Palácio das Esmeraldas, muito do estilo da ex-primeira dama ainda está preservado. O mobiliário e várias peças de decoração são da época que ela morava lá. São móveis de madeira de lei, sóbrios e com cores fechadas. 

Dona Gercina Borges Teixeira dá nome à rua onde está sua antiga residência, que liga a Praça Cívica e o Bosque dos Buritis. Também receberam o nome da ex-primeira dama uma rua na Vila Maria José, em Goiânia, e no Bairro Ilda, em Aparecida de Goiânia. Há também uma escola estadual com o nome de Dona Gercina em Porangatu e um centro de educação infantil na cidade de Goiás que traz a mesma homenagem.

Expediente

Edição Multiplataforma
Silvana Bittencout, Fabrício Cardoso, Rodrigo Alves e Michel Victor Queiroz

Reportagem
Rogério Borges

Edição de fotografia
Weimer Carvalho

Arte
André Luiz Rodrigues

Design
Marco Aurélio Soares

Audiovisual
Carmem Curti
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