A menina de bicicleta

Wildes Barbosa

A menina de bicicleta

Goiânia viu a garota que viria a ser a primeira reitora de uma universidade federal no Brasil brincar por suas ruas empoeiradas. E Maria Cassimiro viu uma cidade transformar-se

Rogério Borges


Esta menina não para. De lá pra cá, de cá pra lá, palmilhando cada rua do centro desta cidade. Nesta bicicleta, ela vai longe, arriscando-se neste cascalho traiçoeiro. Só tem asfalto na Praça Cívica e na Av. Goiás até a Praça do Bandeirante. O restante é só terra, poeira, lama na época de chuva. Mesmo assim, ela continua a brincar com sua bicicleta. Ela e tantas outras crianças. Aproveitam a liberdade de uma cidade ainda pequena, segura, onde todos conhecem todos. Deixa ela brincar, mas não vai reclamar se um dia desses se esborrachar no chão, se esfolar toda nesse terrão árido. Mas mesmo se levar um tombo, terá valido a pena se divertir tanto.

 

Olha, lá! Não falei? “Um dia eu caí no meio da Avenida Anhanguera. Parte dela era puro cascalho. Levei o maior tombo”, confessa, entre risos, Maria do Rosário Cassimiro, 86 anos de idade, educadora, moradora da capital goiana desde 1945, primeira mulher a ocupar a reitoria de uma universidade federal em todo o País. A menina da bicicleta é uma das imagens mais fortes que tem de uma adolescência feliz em Goiânia, para onde veio com a família em busca de estudos. “Nasci em Catalão, mas lá não havia muitas oportunidades nessa área. Aqui já existiam colégios bons, como o Santo Agostinho, o Ateneu Dom Bosco, o Lyceu.”

 

E foi para uma modesta casa em frente a um deles que Maria Cassimiro, pais e irmãos se mudaram, depois de morarem num imóvel alugado entre as ruas 5 e 20, no Centro. “Esta foi a primeira casa que compramos aqui e tinha só um quarto. Ficava ali na Rua 56, no antigo Bairro Popular, defronte ao Colégio Santo Agostinho. Depois meu pai aumentou o imóvel.” Era, na verdade, voltar a uma antiga vizinhança, ainda dos tempos de Catalão. “Madre Esperança Garrido, que agora é até nome de teatro, era a diretora do Santo Agostinho. Ela conhecia meu pai e ficou muito feliz quando nos mudamos para cá, quando fomos estudar com ela.”

 

Uma decisão que começou num dia festivo. Festivo para toda a cidade. “Meus pais vieram assistir ao Batismo Cultural de Goiânia, em julho de 1942. Minha mãe ficou encantada com a cidade e ela e meu pai passaram a planejar nossa vinda para cá. Ambos achavam que aqui estava o futuro para a família e estavam certos.” Realmente, a vida de todos mudou, passando por alterações profundas no mesmo ritmo em que a cidade experimentava seu progresso. “Quando chegamos, Goiânia ia até a ponte do Botafogo, ali na Av. Anhanguera. Para o lado de lá não tinha nada. Era só mato.” Um ermo que Maria do Rosário ajudaria a desbravar.

 

Sua trajetória de vida está ligada às duas principais universidades fundadas em Goiânia, a antiga Católica de Goiás (hoje PUC Goiás) e a Federal de Goiás. “A primeira universidade foi a Católica, um ano mais velha que a Federal. A Federal começou dentro do Colégio Santo Agostinho, de frente da minha casa. E a Católica começou as construções lá no alto do Setor Universitário. Lá eu me formei em Pedagogia. Não havia nada, nenhuma casa naquela região naquele tempo. Nós íamos até lá subindo por uma ladeira por onde a água das chuvas escorriam e faziam vincos profundos na terra. Hoje, esse local é a Praça do Botafogo.”

 

A moça curiosa encontrou na educação a sua vocação. Para estudar do outro lado de um bem mais caudaloso Córrego Botafogo, ela atravessava uma das primeiras pontes da cidade. Não era raro ela passar nas proximidades do Bosque do Botafogo, que era chamado de Matinho naquele tempo, onde acontecia algo inimaginável para os dias atuais. “Ali, as lavadeiras iam fazer seu trabalho. Era uma água limpinha. Foram construídos alguns tanques para que elas pudessem lavar a roupa no Botafogo. Só muitos anos depois, o Iris Rezende, quando era prefeito, construiu o Parque Mutirama no lugar. Mas o bosque ainda existe”, ressalta.

 

As lavadeiras do Botafogo é que não existem mais, assim como as áreas desabitadas do Setor Universitário. Em 1982, este bairro, assim como o Campus Samambaia da UFG na região norte da cidade, presenciaram algo inédito. Pela primeira vez, uma mulher foi nomeada reitora de uma universidade federal no Brasil. Uma honra que coube exatamente à menina de bicicleta que pulava erosões causadas por enxurradas para poder estudar. “Eu nunca poderia imaginar algo assim. Nunca. E foi surpreendente mesmo, porque fui nomeada para o cargo no regime militar, o que mostrou que os militares no poder não eram tão machistas quanto pensávamos.”

 

Naquela época, Goiânia era uma cinquentona que procurava viver ciclos de desenvolvimento. E eles vieram. “Goiânia será uma segunda São Paulo”, prevê Maria Cassimiro. “Só que mais bonita, com um traçado melhor, mais arborizada”, acrescenta. “Antes de Brasília, a gente chamava Goiânia de a ‘Capital Caçula do Brasil’”, recorda. Seus pensamentos viajam de volta no tempo, a uma época em que a professora reconhecida nacionalmente, que ajudou a fundar a Universidade do Tocantins no início dos anos 1990, não pensava em ser educadora. “Acho que foi a providência divina que colocou o magistério no meu caminho.”

 

Um caminho que teve episódios interessantes. Na segunda metade dos anos 1940, era possível ver Maria Cassimiro em um desfile de 7 de setembro, munida de sua inseparável bicicleta, com faixas verdes e amarelas, descendo a Av. Araguaia, da Praça Cívica até a Av. Paranaíba. Ou quem sabe poderia assistir animadas festas juninas na recém-construída sede social do Jóquei Clube, na Av. Anhanguera, onde a jovem Maria Cassimiro mostrava seu talento tocando acordeon. “É um crime quererem demolir aquele prédio. Ele era lindo, perfeitamente cabível nos dias atuais”, lamenta quem viu o edifício novinho em folha.

 

Este e muitos outros prédios históricos. “Aqueles prédios da Praça Cívica, do antigo Ministério da Agricultura, dos Correios, do Tribunal de Justiça”, menciona. E um bem ao lado de sua casa. “Sim, me lembro desde o início do prédio da Escola Técnica, ali ao lado do Santo Agostinho. Havia dois galpões, um para as aulas, outro para o teatro, que dava para a Rua 66.” Por todos esses locais, ela andou e guardou na memória uma Goiânia que não existe mais: a Praça do Cruzeiro cercada por mato, os terrenos baldios onde seriam construídos bairros nobres, como Marista e Bueno, as meninas de bicicleta que percorriam uma cidade em seu nascimento.


Diomício Gomes

Colégio Santo Agostinho – Construído pelas Irmãs Agostinianas Missionárias, é um dos primeiros colégios da capital, fundado quando Goiânia tinha apenas 4 anos de existência. Sua fundação em 1937 deu-se no contexto do esforço de trazer para a cidade mais atrativos que pudessem convencer as pessoas a apostar seu futuro aqui. As primeiras freiras da ordem chegaram a pedido do então arcebispo D. Emmanuel Gomes de Oliveira e tinham a missão de fundar o colégio e apoiar os trabalhos da Santa Casa de Misericórdia, ainda em construção. Escola tradicional, nela estudaram várias personalidades da vida pública goiana.

Fábio Lima

Praça do Botafogo – O local, por muito tempo, foi uma espécie de fronteira entre a parte central da cidade e setores mais afastados, que expandiam os limites da cidade. Porta de entrada de bairros tradicionais, como a Vila Nova e o Setor Universitário, a Praça é cortada pela Av. Anhanguera e já foi palco de shows e encontros estudantis. Hoje, ela anda um tanto desprezada, local de passagem de carros e dos ônibus do transporte público. No seu entorno predominam pequenos comércios e hotéis. Ela ganha algum movimento pelo fato de estar próxima da região das universidades.

Zuhair Mohamad

Praça Universitária – Sede de prédios da Universidade Federal de Goiás e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, o local tem uma ampla história e um desenho urbanístico ousado. Existe a tese de que seu traçado já havia sido previsto nos planos iniciais de Goiânia concebidos por Attílio Corrêa Lima, mas ela só saiu do papel em 1969, arrebatando um prêmio nacional de arquitetura no início dos anos 1970. No seu interior está um dos maiores museus ao ar livre da América Latina, além do Palácio da Cultura e da Biblioteca Marieta Telles Machado. No seu entorno encontram-se o Museu da PUC e uma biblioteca da UFG.

Wildes Barbosa

Praça do Cruzeiro – A Catedral Metropolitana deveria ter sido construída num local alto, de onde pudesse ser vista por boa parte da cidade. O espaço escolhido foi a atual Praça do Cruzeiro, em linha reta com o Palácio das Esmeraldas, mas isso acabou não acontecendo, apesar de a primeira missa da capital ter sido celebrada ali. Ficou o Cruzeiro e, nas adjacências, as paróquias Nossa Senhora Auxiliadora (hoje um tradicional colégio da cidade) e a Paróquia São José. Hoje a Praça do Cruzeiro é um dos locais mais movimentados da cidade e sofreu intervenções para a construção da linha do modal de transporte BRT.


Wildes Barbosa

Bosque do Botafogo – Uma das primeiras áreas verdes de Goiânia, ele se estendia pelas margens do córrego de mesmo nome. No local foi construído, posteriormente, o Parque Mutirama, e dentro dele, o Planetário da UFG. Tornou-se sinônimo de diversão para as famílias da cidade e ponto para excursões escolares. Do outro lado da margem, foi criado o Parque Botafogo Vila Nova. Mas o Matinho, como o espaço era designado, perdeu muito de seu terreno e a canalização do Botafogo e a poluição de suas águas comprometeram a função pública do espaço. Ali também se encontra uma série de estátuas de dinossauros.

Wildes Barbosa

Avenida Anhanguera – Artéria mais importante de Goiânia ainda hoje, ela atravessa a cidade de ponta a ponta, indo do Terminal Padre Pelágio, na região Oeste, ao Terminal Novo Mundo, na Região Leste da capital. Principal ponto de comércio de rua por décadas, a Anhanguera perdeu importância nesse quesito com a chegada dos shopping centers e a abertura de outras zonas comerciais. Mas ainda hoje abriga muitas lojas, sobretudo no Centro e na região de Campinas. Por ela também passa o Eixo-Anhanguera, que transporta cerca de 200 mil pessoas por dia. Na Anhanguera também estão a Praça do Bandeirante e o Teatro Goiânia.

Paulo Henrique Dias

Jóquei Clube – Por décadas, o Jóquei Clube de Goiás, encravado em um amplo quarteirão entre a Av. Anhanguera e a Rua 3, no Centro, foi sinônimo de status social, de festas animadas, de prestígio e riqueza. Sua sede foi projetada por ninguém menos que Paulo Mendes da Rocha, o arquiteto vivo mais importante do País. Mas o tempo dos concorridos bailes de carnaval, dos reveillons onde compareciam a nata da sociedade goiana, passaram. O lugar foi envolvido em crises financeiras e em litígios judiciais e a histórica sede social do clube fundado em 1935 esteve sob risco de demolição.

Diomício Gomes

IFG Goiânia (Escola Técnica Federal) – Uma das edificações erguidas para o Batismo Cultural de Goiânia, em 1942, e sede do principal evento daqueles festejos, a Exposição de Goiânia, o prédio da antiga Escola Técnica Federal (depois rebatizada de Instituto Federal de Goiás, IFG), é patrimônio arquitetônico da cidade. Ele ganhou este título em razão de suas linhas art déco, ainda hoje preservadas nas fachadas. Boa parte do seu piso também continua sendo da época da inauguração. O pórtico com duas colunas transformou-se em marca registrada do lugar, que sempre se dedicou ao ensino profissionalizante em várias áreas.

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