Eu nasci antes do asfalto

Fabio Lima

Vicente Arycan afirma ser o primeiro a vir ao mundo na nova capital, cidade que ele viu crescer num ritmo muito além do que o menino que andava a cavalo por suas ruas poderia imaginar

Rogério Borges


Chegue ali naquela ponta de mato. Tá vendo? Ali na frente, indo pelo trieiro, perto daquele pé de angico, descendo a ladeira do córrego. Olha, lá vão o pai a cavalo e o filho logo atrás, também em sua montaria. Pois é, aquele homem ali tem muito prestígio aqui nesta terra de meu Deus. Ele é quem coordena a distribuição de terras, tem a chave do cofre, recebe quem chega aqui disposto a comprar um pedaço de chão para fazer a vida. E o filho dele está indo agora estudar ali no colégio das freiras que vieram de Catalão. Vieram fundar uma escola na nova cidade. Um dia, esse menino vai olhar pra cá e dizer: “Êta Goiânia que cresceu!”

 

O menino agora vem de sua fazenda em Barro Alto e na curva da estrada que leva a Nerópolis, vê um mundaréu de prédios, uma quantidade incontável de setores, uma cidade que virou metrópole e não abriga mais estudantes indo para o colégio a cavalo. “Quando vejo essa imensidão, penso o tanto que estou velho”, brinca Vicente Arycan, 84 anos, praticamente todos eles vividos em Goiânia. “Fui o primeiro a nascer aqui”, garante. “Fui aparado pelas mãos do doutor Domingos Vigiano na casa de meus pais, que ficava ali na Rua 24, no Centro”, relata. “O Córrego Botafogo passava bem debaixo dessa nossa casa.”

 

Vicente conta a história de Goiânia como se relatasse a sua própria trajetória de vida. Afinal, é difícil mesmo dissociar uma existência da outra. Elas estão tão interligadas que nem mesmo os anos nublaram as lembranças, que permanecem vivas, na ponta da língua. “Quando eu era moleque, não tinha uma rua asfaltada em Goiânia sequer. As primeiras avenidas a ganhar asfalto foram a Paranaíba, a Goiás e a Anhanguera. Eu digo sempre que nasci antes do asfalto. Isso aqui era só terra. Havia poucas casas e prédios construídos. A de meus pais era uma das poucas que existiam”, relata.

 

Ele se refere não mais àquela casa pioneira na beira do Botafogo, e sim a outras residências que sua família ocupou. Uma ficava na Rua 20, no Centro, em uma pracinha que até hoje existe, pouco abaixo da Catedral, quase em frente ao local onde seria fundada a faculdade de Direito da futura UFG. A outra, a que lhe traz mais recordações, era situada na tríplice esquina da Av. Tocantins com as ruas 8 e 1, um quarteirão abaixo da Praça Cívica. “Agora é um estacionamento e meu apartamento fica perto deste lugar. Quando passo ali, tenho que confessar, bate um sentimento diferente, uma saudade. Mas isso também passa logo”, garante.

 

Foi deste ponto privilegiado que Vicente viu uma cidade surgir no cerradão, praticamente do nada. “Só havia o Palácio das Esmeraldas, na Praça Cívica, os prédios do Grande Hotel e da sede do jornal O Popular, na Av. Goiás, o Cine Santa Maria, a casa do Doutor Pedro Ludovico, que hoje é museu, e mais umas casas espalhadas. Uma era do desembargador Heitor Fleury, que hoje dá nome ao Fórum”, informa. “E todo mundo andava de bicicleta”, completa. “Meu pai foi Solon Edson de Almeida, homem de confiança de Pedro Ludovico Teixeira.” Sua missão era crucial, sobretudo para um local em ampla expansão.

 

“Meu pai veio para cá antes de a cidade existir, ainda em 1932. Ele veio legalizar a área onde Goiânia seria construída. Ele organizou toda a questão da doação das terras e também da venda dos terrenos. Meu pai trabalhava ali na esquina da Av. Paranaíba com a Av. Goiás, onde ficava o Departamento de Terras. Até a chave do Banco Agropecuário, que negociava os lotes da nova capital, ficava com ele”, enumera, orgulhoso. Um busto de Sólon pode ser visto na Praça do Trabalhador, lugar que também integra as recordações de Vicente. “Dia desses estava no Vapt-Vupt da Rodoviária e disse à atendente: eu passava a cavalo por aqui”.

 

Sim, ele é o daquele passeio a cavalo do início do texto. Isso porque a família de Vicente era a proprietária de uma grande fazenda, 45 alqueires de terras na atual região norte de Goiânia. “Era uma propriedade grande, que pegava a barra dos três córregos: o Botafogo, o Anicuns e o Capim Puba. Ali o meu pai pescava, onde hoje é a ponte sobre o Anicuns, na Av. Goiás. Todo dia ele trazia, ao menos, um dourado e um pacu. Tinha muito peixe ali.” Águas limpas de uma fazendona que, depois de loteada, resultou nos setores Criméia Leste e Oeste, entre outros. Depois que tudo virou cidade, as pescarias desapareceram. Não dá para pescar no esgoto.

 

De suas brincadeiras em um Bosque dos Buritis onde era possível tomar banho no córrego que atravessava a pequena mata, às diversões de crianças com os filhos de Pedro Ludovico Teixeira num palácio recém-inaugurado – seu pai e o fundador da cidade eram compadres –, Vicente cresceu acompanhando a cidade se desenvolver com ele. Aqueles itinerários no lombo de animais para estudar no Colégio Santo Agostinho foram trocados por automóveis, que começaram a dominar a paisagem. Prédios se erguiam a alturas inéditas, o comércio abria seus numerosos pontos, tudo ficou mais agitado e barulhento. E novas paixões surgiram.

 

“A gente ia assistir aos jogos do Goiânia no antigo Estádio Olímpico e eu virei torcedor, peguei amor pelo time. Depois, a partir de 1976, eu virei presidente do clube, por cinco mandatos.” Vicente gosta de relembrar os velhos tempos em reuniões familiares. Primogênito da família, todos recorrem à sua memória para recordar episódios e pessoas do passado. Seus 5 filhos, 6 netos – “daqui a pouco nascem gêmeos e vou inteirar 14 bisnetos” – também têm no patriarca uma fonte de informações inestimável. Uma testemunha do que Goiânia foi desde o seu princípio. Um homem que presenciou esta cidade se transformar no que é hoje.

 

Tijolo após tijolo, ele viu, como um vizinho privilegiado, a catedral ser construída. Viu o prédio do atual Tribunal Regional Eleitoral, na Praça Cívica, ser erguido, patamar após patamar. Viu a sua Av. Tocantins de sua infância, onde antes havia um campo de futebol de terra para a garotada das redondezas, se divertirem, passar a ser uma passagem das mais movimentadas da capital. O menino com nome indígena – “meu pai morou 4 anos com os karajás, em Aruanã, e lá havia um cacique com este nome, Arycan, a quem ele quis homenagear” – viu tudo mudar muitas e muitas vezes. Vicente se mostra nostálgico sim, mas feliz por ter vivido tudo isso.


Marcello Dantas

Setores Criméia e região da Rodoviária – A área da antiga fazenda da família de Vicente Arycan é um conjunto de bairros residenciais da classe média de Goiânia (Crimeias Leste e Oeste), além de sediar um dos principais polos atacadistas e varejistas do Brasil. A região da Rua 44, nas proximidades do Terminal Rodoviário de Goiânia, movimenta mais de meio bilhão de reais por mês e tem mais de 20 mil pontos de vendas, entre galerias, shoppings e lojas de rua, sem contar o comércio ambulante. Nas vizinhanças também estão o Parque da Nova Vila, onde ocorre a festa da Pecuária, e o Cemitério Jardim das Palmeiras.


Diomício Gomes

Ponte da sobre o Capim Puba – Onde o pai de Vicente Arycan pescava não é mais o mesmo daquela época. O Ribeirão Anicuns, que percorre boa parte da região Norte de Goiânia, está poluído, com o despejo de esgoto in natura. Um dos afluentes do Rio Meia Ponte, o curso d´água, paradoxalmente, é vizinho da Estação de Tratamento de Esgoto de Goiânia. A referida ponte foi refeita e por ela passa a Av. Goiás Norte, que tem recebido as obras de instalação do novo modal de transporte coletivo da cidade, o BRT. A via é uma das principais ligações entre o Centro da cidade e as regiões Norte e Noroeste da capital.

Diomício Gomes

Rua 20 (Centro) – Rua icônica de Goiânia, ela começa na Praça Antônio Lisita, cruzamento da Av. Araguaia com a Rua 4, e termina na Av. Universitária, em frente à Catedral Metropolitana. No caminho, muita história. Uma delas fica na pequena Praça XI de Maio, que marca não só o lugar de algumas das primeiras residências da cidade, mas também a criação da Faculdade de Direito da UFG. Também funcionava ali o Hospital Maria Auxiliadora, do médico Domingos Vigiano, que fez o parto de Vicente Arycan. Mais abaixo, ficava a casa de Colemar Natal e Silva, pioneiro da cidade e fundador da UFG, onde hoje funciona a Academia Goiana de Letras.

André Costa

Bosque dos Buritis – O Córrego dos Buritis quase não pode mais ser visto pela população. Ele foi canalizado em boa parte de seu curso, impedindo que suas águas fluam da maneira como acontecia antes. Mesmo suas nascentes não foram respeitadas, com a construção de empreendimentos imobiliários sobre elas, levando-as para o subterrâneo. O córrego abastece o Lago dos Buritis, que fica dentro do Bosque dos Buritis. Essa área verde fez a região de seu entorno ser muito valorizada, mas sua área ganhou construções indevidas, como o prédio da Assembléia Legislativa de Goiás. No bosque também está o Museu de Arte de Goiânia.


Cristiano Borges

Palácio das Esmeraldas – Jóia do patrimônio Art Déco da cidade, a sede do Governo de Goiás é a principal construção da Praça Cívica e um dos primeiros edifícios a serem erguidos em Goiânia. A fachada verde, as arcadas de sua entrada, as janelas quadradas e os vitrais no centro da fachada são marcas registradas do imóvel, que se divide internamente em uma ala administrativa e outra residencial, esta localizada nos andares superiores. O governador costuma despachar e morar no prédio. Nos fundos, há um amplo jardim, cujas atrações principais são as jabuticabeiras plantadas pela ex-primeira-dama, Gercina Borges.

Cristiano Borges

Avenida Tocantins – A avenida onde ficava uma das primeiras residências da família de Vicente é uma das artérias principais do Centro de Goiânia. Ela se estende da Praça Cívica até o Setor Aeroporto, nas proximidades da Praça do Avião. Um nome coerente ao uso que se dava a parte da via nos primeiros tempos de Goiânia. Ainda sem um aeroporto definitivo, a parte final da avenida era o campo de pouso da cidade. Ali, por exemplo, desceu o avião que trouxe o então presidente Getúlio Vargas à nova capital, em 1940. A Tocantins também abriga o Teatro Goiânia, o Centro Cultural Cora Coralina e o Centro de Convenções de Goiânia.

Diomício Gomes

Rua 24 (Centro) – É uma das ruas mais tradicionais – e históricas – de Goiânia. Na altura do número 580, por exemplo, ficava uma frondosa moreira debaixo da qual o interventor Pedro Ludovico Teixeira despachava enquanto os prédios que abrigariam o governo estadual eram construídos. Apesar de ser tombada por um decreto municipal, a árvore foi derrubada. Na rua também ficava a casa da historiadora Amália Hermano, que recebia na residência personalidades de vulto, como o casal de escritores Jorge Amado e Zélia Gattai. Na 24 também estava instalado o Cine Santa Maria, um dos primeiros de Goiânia.

Douglas Schinatto

Estádio Olímpico – Primeiro estádio de maior porte de Goiânia, o Olímpico foi palco de decisões entre as equipes locais. Goiânia e Atlético Goianiense construíram a rivalidade inicial do futebol goiano, depois transferida para os clássicos entre Goiás e Vila Nova. Mas craques de outros times jogaram no Olímpico. O Santos, de Pelé, e o Botafogo, de Garrincha, foram alguns dos escretes que pisaram no gramado do estádio, que foi demolido e reconstruído na mesma esquina da Av. Paranaíba com a Rua 74. Ao lado dele foram erguidos o Ginásio Rio Vermelho, palco de muitos shows na cidade, e o Centro de Excelência do Esporte.

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