O conquistador de territórios

Magdiel Rezende

O menino vindo de São Paulo fez do bairro de Campinas o seu parque de diversões, a sua paixão por futebol, a sua vida. E Horieste Gomes não deixa essas lembranças desaparecerem

Rogério Borges


“A primeira conquista de território foi a quadra da serraria dos meus avôs e suas adjacências.” Estamos diante de um pequeno bandeirante? O menino que veio do estado de São Paulo para a tradicional Campininha das Flores aos seis anos de idade era intrépido. “Inicialmente residindo na Rua Pouso Alto, esquina com a Av. Paraíba (Ademar Ferrugem, o nome certo é Aldemar), ganhei espaço para o sul até a Av. Maranhão (Castelo Branco), onde a Campininha terminava. Para o norte, assisti à construção da Av. Amazonas (Anhanguera).” Sim, o garoto conheceu todos esses lugares com seus nomes anteriores, batizados antes do progresso.

 

Horieste Gomes, paulista de Igarapava, pertinho da fronteira com Minas, gosta de lembrar. Fez desse hábito um ofício, registrando em livros suas recordações dos tempos em que Goiânia e Campinas ainda estavam separadas por amplos terrenos e a Av. Anhanguera fazia as vezes da estrada que ligava as duas localidades. “No primeiro ano após a minha chegada a Campininha, ganhei o espaço do Cerrado com a chegada da estação da Primavera, floração e frutificação, e respectiva coleta de frutos até o verão. Espetáculo inesquecível onde centenas de pessoas adentravam o cerrado da Vila Coimbra, do Setor Bueno, do Jardim América, da Aparecidinha.”

 

Bairros nobres em formato de Cerrado frutífero, áreas sem cercas, sem muros, sem asfalto. De sua Campininha do coração, Horieste ia longe. O bairro tinha três ligações com a nova capital. “Pela Av. 24 de outubro e Amazonas, passando pelo Lago das Rosas, Setor Aeroporto e Jóquei Clube. Também pela Av. Independência, passando pelo Cemitério Santana, chegando até o Matadouro Municipal, situado na margem do Capim Puba e margeava a cerca de arame do Aeroporto de Goiânia. E pela estrada de terra que passava pelo Asilo dos Velhos, hoje Tribunal de Justiça de Goiás, em frente ao Bosque dos Buritis.” Caminhos que ele sabia de cor.

 

Era um tempo quase idílico, quando os córregos que cortam a capital abasteciam um rio caudaloso e limpo. “A bacia do Meia Ponte estava toda preservada, com água límpida, oxigenada e propícia ao desenvolvimento da vida animal.” Anicuns, Capim Puba, Cascavel, Buritis, Caveirinhas, Santo Antônio. Horieste se lembra de todos esses ribeirões e de todos os lugares que marcaram sua formação na cidade que a família adotou. No Grupo Escolar Pedro Ludovico Teixeira, o conquistador ampliou os horizontes com a leitura das obras de Monteiro Lobato. E partir dali ele uniria os livros ao lugar que mais amava estar e descobrir.

 

“Cito alguns lugares especiais que jamais esquecerei. A Praça Joaquim Lúcio, aos sábados e domingos, repleta de campineiros, moças desfilando na passarela circular para os rapazes em busca de namoradas; o coreto central ocupado na parte de cima pela banda com as suas retretas musicais. O Cine Campinas, na Av. 24 de Outubro, em frente à Praça, local onde eu assistia os filmes-seriados. Os locais de pescaria no Rio Meio Ponte, abaixo da antiga usina Jaó, onde o rio se abria num arco de mais de 100 metros de largura e reunia pescadores. O Capim-Puba, cevado pelo Matadouro Municipal, rico em bagres e lambaris.”

 

Essas lembranças só são possíveis por conta de um episódio familiar, que deu a Goiânia outro escritor além de Horieste Gomes: seu primo Bariani Ortencio. “A vinda do clã dos Bariani para Goiânia, segundo o primo Bariani, foi uma decisão do meu avô materno, Fioravante Bariani, que ao ouvir notícias da construção da nova capital, enviou o filho Pedro Bariani para tomar conhecimento do empreendimento. O meu tio Pedro chegou até Anápolis e ficou entusiasmado por saber que Goiânia era administrada por um jovem prefeito, Venerando de Freitas Borges. Meus pais, Júlio Gomes e Romilda Bariani, e meus irmãos chegamos em novembro de 1939.”

 

Campinas foi o destino natural para a família, que encontrou ali mais oportunidades comerciais para se manter no início. E quem chegava a Campinas naquela época era, instantaneamente, apresentado a alguns de seus símbolos mais tradicionais. “Tanto a Matriz de Nossa Senhora da Conceição quanto o Colégio Santa Clara exerceram forte influência numa grande parcela da população de Campinas, em sua grande maioria de católicos. A Matriz e o Colégio passaram por várias reformas em suas estruturas. Recordo-me perfeitamente da frente da Matriz com as suas duas torres e o relógio central, voltados para o Centro Cultural Gustav Ritter.”

 

Essa força religiosa da antiga Campinha das Flores estava ligada a duas ordens. “A vinda dos padres redentoristas e das irmãs franciscanas alemãs contribuíram não apenas em suas missões religiosas, mas, principalmente, na mudança de hábitos e costumes, na formação escolar e no aprendizado de profissões produtivas.” Horieste frequentava outras partes da cidade. Ele foi aluno do Lyceu de Goiânia e gostava de ir à Praça do Trabalhador, no final da Av. Goiás, onde ficava a Estação Ferroviária e o Monumento ao Trabalhador. “Ele resgatava o Dia do Trabalho, o trabalho daqueles que produzem as riquezas e são marginalizados.”

 

E, claro, quem morava em Campinas tinha um clube do coração. “A minha ligação com o Atlético Clube Goianiense vem desde os anos 1940, quando ainda menino assisti alguns treinos no campo de terra que existia próximo à residência de Antônio Accioly, benfeitor do Dragão, situado a três quadras de onde eu morava, na Rua Pouso Alto.” Um amor que só cresceu com o tempo. “Em 1944, eu já estava mais presente no campo do Atlético, no final da 24 de Outubro. Assistir treinos e jogos passou a ser rotina semanal.”Horieste chegou a entrar em campo, jogando na equipe amadora do juvenil do Atlético entre 1948 e 1952.

 

No futebol, nas pescarias, nas ruas de uma cidade que mudou totalmente sua estrutura física, social e ambiental em 87 anos de existência, Horieste encontra sua identidade. Ele, também prestes a completar os mesmos 87 anos – é apenas um mês e meio mais jovem que a capital –, lamenta a perda das antigas floreiras que enfeitavam casas e avenidas, das águas límpidas dos ribeirões, de tantos espaços públicos que deixaram de ser tão democráticos quanto antigamente. Mas isso tudo não lhe tira nada do amor que nutre por esta terra. “Tenho que deixar minhas cinzas no solo da Campininha, sobre o campo do Atlético Clube Goianiense.”

Diomício Gomes

Praça Joaquim Lúcio – Um dos pontos mais tradicionais do bairro de Campinas, a Praça Joaquim Lúcio e seu inconfundível coreto foram, por muitas décadas, pontos de encontro da comunidade da região. O espaço concentrava atividades de lazer e salas de cinema, atraindo a população, sobretudo nos finais de semana. O crescimento de Campinas desfigurou bastante a região, tomada por um comércio intenso, agências bancárias e atacadistas. Durante todos esses anos, a praça passou por várias reformas que tentaram trazer o ar de antigamente ao espaço. Ali também fica a Biblioteca Municipal Cora Coralina.

Douglas Schinatto

Estádio Antônio Accioly – Ele quase foi demolido antes de ser totalmente revitalizado, a partir de uma mobilização de torcedores do Atlético Goianiense e de moradores de Campinas. Com sua arquitetura peculiar, hoje o local está passando pelas últimas etapas de uma nova reforma, que vai deixá-lo ainda mais apto para receber jogos até da Série A do Campeonato Brasileiro. Batizado em homenagem a um dos mais destacados apoiadores do clube de futebol, o Antônio Accioly fica no início da Av. 24 de Outubro e tornou-se um símbolo rubro-negro do setor, onde o Dragão da Campininha conquistou alguns de seus títulos estaduais. 

Diomício Gomes

Matriz de Campinas – O nome oficial é Paróquia Nossa Senhora da Conceição e Santuário Basílica Nossa Senhora Perpétuo Socorro, mas os goianienses só a chamam de Matriz de Campinas. O edifício passou por modificações arquitetônicas no decorrer do tempo, mas o lugar é um dos mais relevantes para o registro da história da presença dos redentoristas em Goiás, que também têm participação decisiva na consolidação da Romaria de Trindade. Em 2016, o templo recebeu o título de Sacrossanta Basílica, do Vaticano. A primeira capela construída no local data de 1843. Na mesma praça fica o Centro Cultural Gustav Ritter.

Wildes Barbosa

Rio Meia Ponte (Usina do Jaó) – Quem passa pela BR-153, ao atravessar a ponte sobre o Rio Meia Ponte, poderá ver as ruínas de uma antiga barragem, próxima ao atual Clube Jaó. Ali foi instalada a primeira usina de força de Goiânia, tentativa de impulsionar o desenvolvimento da capital com mais estabilidade. Horieste Gomes se recorda do poço formado abaixo da represa, exatamente onde hoje está a ponte da rodovia. Mas o cenário hoje é bem diferente do daquele tempo. As águas do Meia Ponte estão invariavelmente turvas hoje em dia, quando não absolutamente fétidas, na época da seca, quando se transforma num esgoto a céu aberto.

Diomício Gomes

Av. 24 de Outubro – Principal artéria comercial do bairro de Campinas, a avenida que leva no nome a data da inauguração de Goiânia – e não por mera coincidência, também a da vitória de Getúlio Vargas na Revolução de 1930, que alçou Pedro Ludovico ao poder em Goiás – tenta se equilibrar entre edifícios antigos e o apelo por novos pontos para lojas e a demanda por mais e mais espaço para carros e ônibus. Se nela estão alguns marcos de Campinas, também é nela que os problemas de trânsito e ocupação urbana da cidade que cresceu além do esperado se acumulam. Um bom emblema para a capital em seu atual estágio.

Douglas Schinatto

Lyceu de Goiânia – Ocupando um quarteirão inteiro no coração do Centro da cidade, o mais tradicional colégio público da capital abrigou vários expoentes da política goiana, como alunos ou professores. Com 83 anos de fundação, ele é resultado da transferência do antigo Lyceu da cidade de Goiás, um dos mais antigos do Brasil, sendo instalado num amplo edifício em art déco, tombado pelo IPHAN em 2003 como Patrimônio Histórico. Ao longo de sua história, o colégio viu muitos de seus alunos lutarem por mais liberdade, grupos culturais nascerem dentro de seus muros e hoje lida com o debate em torno de uma possível militarização de seu ensino.

Diomício Gomes

Estação Ferroviária – O Monumento ao Trabalhador, citado por Horieste, não existe mais. A obra marcava o início da Av. Goiás, na saída da Estação Ferroviária de Goiânia, inaugurada em 1950. Com projeto de Elder Rocha Lima e murais de Clóvis Graciano, o monumento foi um cartão-postal da cidade e ponto de manifestações, o que decretou sua destruição. Após vários ataques durante o regime militar, a obra, erguida em 1959, foi retirada em 1986. A Estação Ferroviária, porém, permaneceu, mesmo depois de desativada. Reformada, hoje é um centro cultural, preservando os dois fabulosos painéis de Frei Confaloni em seu interior.

André Costa

Cemitério Santana – Em 9 de dezembro de 1940 ocorreu o primeiro sepultamento no Cemitério Santana, que na época ficava nos limites da cidade de Campininha das Flores, já a caminho da nova capital goiana. No ano 2000, o cemitério foi tombado por um decreto estadual em razão da importância histórica do lugar e pela qualidade de sua arte funerária. No Santana estão os restos mortais, por exemplo, de Pedro Ludovico Teixeira, fundador de Goiânia. O mais antigo campo santo da capital, primeiro a ser inaugurado após sua fundação, ele é uma espécie de refúgio do passado, contando um pouco dos primeiros tempos da cidade.

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