Não há turista que vá à cidade de Goiás que não se encante com “a velha casa da ponte”, um dos cartões-postais da antiga Vila Boa. Mas a residência onde nasceu e viveu a poeta Cora Coralina, com seu amplo quintal, seu porão onde desce um rego d´água e as janelas que dão para o Rio Vermelho é apenas uma das mais de mil edificações que compõem o sítio histórico que foi tombado vinte anos atrás pela Unesco, transformando a ex-capital do Estado em Patrimônio da Humanidade. Um título que só é mantido se as características que o motivaram forem preservadas e isso inclui o casario centenário, igrejas e palácios.
Nesta terceira reportagem sobre os 20 anos da concessão do título de Patrimônio da Humanidade à cidade de Goiás, vamos mostrar a situação atual e os desafios na preservação desses imóveis, cuja descaracterização colocaria a honraria em risco. “O título foi concedido a um conjunto que se encontra inserido em um contexto urbano. Parte dos desafios estão relacionados à gestão urbana, como controle de tráfego de automóveis pesados, manutenção de redes subterrâneas, controles de uso e parcelamento de solo, proteção das encostas”, lista Allyson Cabral, superintendente do Iphan em Goiás.
Nas duas últimas décadas, investimentos foram feitos nesse sentido, permitindo que alguns imóveis e espaços históricos fossem revitalizados, mantendo suas características originais. “O município de Goiás foi beneficiado com o PAC das cidades históricas. Tínhamos monumentos que precisavam de preservação e outros estavam muito deteriorados”, afirma o prefeito de Goiás, Aderson Gouvea (PT). Recursos vieram e houve reformas, como a do Mercado Municipal e da sede da própria Prefeitura. “Seis monumentos foram beneficiados. A Escola Veiga Valle, o Teatro São Joaquim, a Ponte da Cambaúba foram refeitos.”
Mas a conservação de grandes edifícios, como o Palácio Conde dos Arcos, a casa de Cora Coralina ou o Coreto e o Chafariz nas praças públicas é apenas uma das vertentes que merecem atenção. A esmagadora maioria dos imóveis que compõem o conjunto tombado é formada por residências particulares, um casario que passa de geração em geração e que mantém sua arquitetura muito peculiar. “Goiás está preservadinha, os moradores têm orgulho de pintar suas fachadas, mas eles poderiam ter mais incentivos”, sugere Marlene Velasco, diretora do Museu Casa de Cora e proprietária de imóveis tombados.
Este sempre foi um tema delicado e que não raramente gera algum tipo de atrito. Uma cidade tombada precisa manter características históricas em seus imóveis. Os donos, por exemplo, precisam de autorização prévia para qualquer tipo de reforma e elas não podem descaracterizar a casa, nem por dentro, nem por fora. “É imprescindível que as ações de intervenção nas edificações protegidas visem a garantia da harmonia do conjunto”, alerta Alysson Cabral, do Iphan. “Respeitamos o proprietário, mas por ser uma cidade histórica, há direitos e deveres”, reforça Salma Saddi, ex-superintendente do Iphan em Goiás.
Foi Salma quem primeiro lançou uma campanha de conscientização sobre os cuidados que as casas e até as lojas da cidade deveriam observar para que o título de Patrimônio da Humanidade não só viesse, mas fosse mantido. Houve estudos para orientar sobre o que fazer nas fachadas de comércios, quanto às cores permitidas para as casas e a respeito de quais materiais poderiam ser empregados nas reformas. “Você pode fazer uma casa muito legal, mas desde que aquilo não desfaça o que conta sobre a originalidade dela”, diz Salma, com a experiência de quem esteve à frente dos trabalhos que levaram à conquista do título.
Cuidados com a preservação
Até o final do último mês de junho, havia 55 processos de intervenção autorizados no sistema do Iphan que monitora reformas de imóveis tombados na cidade de Goiás. Outros 46 pedidos aguardavam complementação de detalhes por parte dos proprietários, além de 14 obras que estavam em fase de fiscalização e 5 outras que ainda passariam por análise. Mas o esvaziamento das residências na região central do sítio histórico é, de acordo com o Iphan, o maior dos desafios. Ainda no Censo de 2010, os domicílios particulares desocupados somavam 209 no perímetro tombado e outros 134 em áreas do entorno.
“Todo o conjunto protegido recebe a atenção do Iphan”, assegura a assessoria do órgão em Goiás. “Há décadas, o escritório técnico do Iphan no local conta com uma equipe especializada, que atende às diversas demandas e presta esclarecimentos aos proprietários dos imóveis privados. Trata-se de uma prestação de consultoria gratuita, especializada em patrimônio cultural, que orienta sobre a melhor forma de intervir nos imóveis.” Mas muitas vezes, apenas boas orientações não bastam. “Existem casos em que o Iphan é acionado para obtenção de recursos federais para a reforma”, informa a superintendência.
Essa ajuda vem do programa Salvamento Emergencial e para ter acesso aos recursos, o proprietário deve comprovar não ter condições financeiras para reformar o imóvel. Essas condições estão estabelecidas no Artigo 19 do Decreto-Lei Nº 25 de 1937. Depois que o pedido é feito, o órgão emite um parecer jurídico sobre cada caso e a possibilidade de a obra ser executada, o que depende ainda da disponibilidade de recursos. A prioridade é estabelecida de acordo com critérios técnicos, “como a relevância do bem no conjunto histórico, a preservação de suas características construtivas e seu grau de deterioração”.
“A cidade de Goiás tem uma tradição de preservação, de manutenção de sua cultura e seu patrimônio”, avalia Nasr Chaul, que era presidente da Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira (atual Secretaria de Cultura) na época da concessão do título a Goiás, em 2001. Ele intermediou a vinda de recursos do Programa Monumenta, do Governo Federal, quando a enchente no réveillon daquele ano causou grandes danos no centro histórico. “Ela ficou preservada desde os anos 1930 ou desde os tempos da época provincial, do Império. É uma tradição manter a arquitetura, a cultura e a religiosidade. É algo de cada habitante.”
Preocupações persistentes
O prefeito de Goiás, Aderson Gouvea, mostra-se preocupado com o ritmo das obras daquela que é a intervenção mais relevante em andamento nos imóveis que integram o sítio tombado como Patrimônio da Humanidade. “É um esforço do município junto com o Iphan para restaurar o 6º Batalhão da Polícia Militar. O Iphan está sem recursos para finalizar. E nós precisamos fazer um esforço muito grande para dar continuidade. Ela iniciou e não finalizou. E está agora em um reinício em marcha lenta. Vamos caminhando para o tempo chuvoso e ela precisa ser terminada antes”, pondera o gestor.
“É de fácil constatação que a pandemia da Covid-19 atingiu a economia em todas as suas instâncias governamentais”, informa a assessoria da superintendência do Iphan em Goiás. “Mesmo assim, o Governo Federal garantiu até agora o montante de R$ 4.740.830,57 para a obra de restauração do 6º Batalhão”, detalha. Ainda segundo o órgão, o projeto prevê não só a restauração do edifício e seus pátios, como também soluções para que o espaço tenha “ressignificação cultural e democratização do acesso”, além de contar com “adaptações necessárias para acolher o bom funcionamento das corporações da Polícia Militar”.
O Iphan acrescenta que a reforma do 6º BPM vai revitalizar toda a área vizinha, já que está em um eixo importante de circulação da cidade. A obra continua com previsão de entrega para 2022 e novos recursos estão sendo buscados para sua conclusão. “As parcerias com as instituições locais são fundamentais para o bom desempenho da gestão”, salienta Alysson Cabral, superintendente do Iphan em Goiás. “Com a Prefeitura e o Governo do Estado, por exemplo, atuamos de forma compartilhada, em que os técnicos estão sempre disponíveis a se reunir em busca de soluções para demandas apresentadas.”
Alguns moradores mais antigos, que lutaram pela conquista do título, se ressentem, porém, da falta de atenção. “Nós precisaríamos que o Iphan voltasse a ter aquela atuação que teve no início, o grande parceiro para que a cidade se tornasse Patrimônio da Humanidade”, pede Marlene Velasco, do museu Casa de Cora. Allyson Cabral, porém, garante que o Iphan continua participativo nos projetos importantes. “Atualmente, o instituto compõe a equipe de revisão do Plano Diretor Municipal, da Comissão de Implementação do Complexo Turístico da Carioca e da comissão de organização do FICA.”
Uma obra há muito aguardada, porém, está quase pronta. A reforma do Gabinete Literário Goyano está em fase de acabamento, recuperando o prédio que abriga a primeira biblioteca do Centro-Oeste, fundada em 1864. “Estamos terminando o telhado e a pintura”, comemora Rafael Ribeiro Fleury, presidente da entidade que mantém o Gabinete. Tudo foi bancado por meio de uma campanha de arrecadação. “Não há um centavo de dinheiro público”, enfatiza. O valioso acervo do local, com livros e periódicos, está em um prédio vizinho e até setembro voltará para as instalações reformadas, que devem ser inauguradas em outubro.
A arquitetura vernacular, elemento singular que permitiu à cidade de Goiás ganhar o título de Patrimônio da Humanidade, está nas fachadas, nas igrejas, no casario. Por isso sua manutenção é complexa, uma vez que ela chega aos detalhes. “Foi reconhecido o conjunto dos imóveis principais, mas a Unesco pediu a ampliação do tombamento. Ela queria uma área maior, incluindo algumas chácaras. Tivemos que fazer uma re-ratificação”, recorda a ex-superintendente do Iphan em Goiás, Salma Saddi. E é sempre bom lembrar que o título passa por certificações. Preservar seus bens, portanto, é prioridade para a cidade de Goiás.