Marcos Nunes Carreiro
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“Pra mim é um prazer, uai. Político anda longe pra dar motivo de notícia, e vocês querem escrever de mim no jornal. Mas depois seleciona, né? Porque eu gosto de brincar também. Eu sempre falo: é preciso levar a vida um pouco na brincadeira.”
Foi assim que Iris Rezende começou uma das últimas entrevistas exclusivas que concedeu ao POPULAR, já no fim de seu quarto mandato como prefeito de Goiânia. Era 9 de dezembro de 2020 e passava pouco das 8h, quando entramos em uma van com o objetivo de andar pela cidade e ver a capital sob o seu olhar.
Iris dizia ter uma relação de simbiose com a cidade. Tanto que nasceram no mesmo ano: 1933, sendo o município de 24 de outubro e ele de 22 de dezembro. Em 2021, Goiânia completou seus 88 anos; Iris, não. O político com a carreira mais longeva da história de Goiás morreu nesta madrugada depois de ficar três meses e três dias internado em decorrência de um AVC sofrido em 6 de agosto. Naquele dia, Iris estava em seu escritório político, na Avenida T-9, onde “batia ponto” sempre que estava em Goiânia. Passou mal no local, enquanto recebia aliados políticos e empresários, e foi amparado pelas filhas Ana Paula e Adriana, que o levaram ao hospital.
Sua presença no escritório demonstrava que Iris continuava trabalhando, apesar de aposentado, uma característica que herdou do pai, Filostro Carneiro Machado. “Papai cuidava de três, quatro fazendas”, contou Iris no dia em que conversamos. “Ele saía de casa segunda (feira) cedo e não aceitava que peão aplicasse uma vacina em bezerro. Era ele”, disse de maneira enfática e fazendo o gesto da vacina com as mãos. Filostro morreu em 1991, aos 84 anos. Quatro anos antes, também tinha sofrido um AVC.
Iris chegou a Goiânia em 1949 vindo de Cristianópolis, onde nasceu, e aqui se tornou conhecido pelo movimento estudantil do qual participou, partindo daí para ocupar, pelas urnas, as principais cadeiras nos espaços políticos de Goiás ao longo de 62 anos. Foi eleito o vereador mais votado da capital no pleito de 1958 e, em 1962, trocou a Câmara Municipal pela Assembleia Legislativa.
Em 1965, assumiu a prefeitura, vencendo Juca Ludovico, então apoiado pelos militares, que, via golpe, tomaram o controle do País um ano antes. Porém, cumpriu apenas três anos do mandato, pois foi cassado em 1969 e só voltou à vida pública em 1982, eleito governador — recuperou os direitos políticos em 1979.
A história do dia em que foi cassado estava no rol das muitas que ele gostava de contar. Morava no Setor Campinas à época, bairro tradicional da capital, e no qual residia desde que havia chegado com a família, 20 anos antes. “Foi tudo inesperado. Era uma sexta-feira. Só cassavam (mandatos) na sexta-feira pra não dar tempo do pessoal fazer movimento. A cidade toda veio pra minha casa, ficou aquele tumulto”, relembrava Iris.
Contou aquela história muitas vezes à imprensa, algumas delas acompanhado de pão-de-queijo, quitanda que gostava de servir em encontros. Certa vez, em 2012, Iris chamou a imprensa ao apartamento onde morava na época, no Setor Oeste, para explicar acusações feitas contra ele. Tinha deixado o mandato da prefeitura dois anos antes para disputar o governo do estado. Depois da coletiva, mandou trazer a bacia de pão-de-queijo. Achou que não daria para todo mundo, e mandou fazer mais.
Mas a casa onde ocorreu a concentração de pessoas naquele 1969 era a que foi morar após se casar, em Campinas. Iris, por ironia do destino, se casou com mulher de mesmo nome, mas sobrenome Araújo, a conhecida Dona Iris, e no dia de seu aniversário: 22 de dezembro. A união se deu em 1964, um ano antes de vencer a eleição para prefeito de Goiânia.
O tempo que passou sem direitos políticos foi dedicado à advocacia, profissão na qual nunca havia atuado. “Tinha o diploma, mas não tinha experiência”, dizia. Mas tinha contatos e isso já bastava para começar. A década que passou advogando lhe propiciou, segundo ele, “a oportunidade de fazer a vida, ganhar dinheiro.” Alegava que foi daí que conseguiu comprar suas fazendas.
Uma delas, a de Canarana (MT), era seu “refúgio”. Passou lá boa parte do tempo entre janeiro e agosto de 2021. Era sua outra profissão, dizia, algo que o “capacitou”, por exemplo, a ser ministro da Agricultura durante o governo de José Sarney — depois foi senador e voltou a ser ministro, desta vez da Justiça, no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Em entrevista ao Jornal do Campo, em maio deste ano, Iris disse: “Eu vivi praticamente até os 15 anos de idade na roça, de forma que tudo o que você possa imaginar de serviço grosseiro de roça eu sei fazer”. A matéria deixa clara ainda outra característica de Iris: o gosto de demonstrar que, apesar de idade, ainda tinha força física.
Um dos takes da reportagem, feito com um drone, o mostra, por exemplo, subindo numa porteira. A cena me fez lembrar de outra, ocorrida em 2017, durante o então tradicional desfile de 7 de setembro. As autoridades estavam em um palco de metal na Avenida Tocantins, a quase dois metros do chão, cujo acesso era por uma escada.
Enquanto os outros políticos, todos na faixa de 40, 50 anos, subiam amparados pelo corrimão, Iris, à época com 83, subia sem encostar na estrutura, e rápido. “Ele gosta de mostrar que sua força física está intacta. Ele faz esteira todo dia, sabia?”, disse-me uma auxiliar na ocasião.
Eu sabia e, por isso, naquele 9 de dezembro de 2020, perguntei a ele se ainda mantinha a rotina de exercícios. Ele respondeu que fazia a sua “ginástica” no prédio onde passou a morar, a poucos metros de seu escritório político, no Setor Marista. “Tem lá uma sala de exercícios e eu tinha o meu técnico para auxiliar nas ginásticas diárias.”
Ressalta, entretanto, que o personal não pôde mais entrar no prédio devido à pandemia de Covid-19, declarada em março daquele ano. “O síndico decidiu proibir a entrada de pessoas estranhas no prédio e, consequentemente, o personal ficou impossibilitado de entrar. Mas eu sempre gosto de praticar exercícios. O corpo humano está a exigir, de cada um, exercícios permanentes.”
Exercitava-se pela manhã, antes do horário comercial. “Quer dizer, eu nunca levantei depois das 5 horas da manhã. Toda vida.” Hábito adquirido da infância passada na fazenda em Cristianópolis. Filostro Machado acostumou os filhos a acordarem ainda de madrugada para trabalhar na lida rural. Saiu da roça, mas os hábitos ficaram. “A gente tem um tempo pra pensar, pra refletir, pra decidir. Chega num determinado momento do dia, que você não tem”, dizia.
Iris praticamente não viajava quando estava exercendo algum mandato, nem para suas fazendas em Britânia (GO) e no Mato Grosso, ou mesmo para conhecer políticas públicas desenvolvidas em outros lugares e que pudessem ser aplicadas em seus governos.
“Eu conheço o mundo inteiro. Já saí com a família (em) algumas viagens. Mas acontece que, quando eu pego o poder, não posso viajar porque centralizo, uai. Como viajo, se aqui em Goiânia, pra comprar um parafuso, tem que ter a minha autorização? Não posso”, disse, enquanto estava parado debaixo de uma árvore no Parque Mutirama.
Ironicamente, o Mutirama foi criado depois de uma viagem que Iris fez aos Estados Unidos, a convite do governo americano, na década de 1960. Visitou a Disneylândia, ficou encantado com o que chamou de “brinquedos monumentais” e decidiu implantar algo do tipo na capital goiana. Em escala muito menor, obviamente.
Conversar durante deslocamentos era coisa rara para Iris, me disseram auxiliares. Gostava de observar a cidade e ver se tinha algo errado. No trajeto de 2 horas e 40 minutos que fizemos no fim de 2020, ele interrompeu a conversa algumas vezes para indicar algo que precisava ser resolvido a um auxiliar que nos acompanhava: “Olha o tanto de lixo ali”; “Olha o buraco aí”; “Viu o outro buraquinho aqui?”.
Era obcecado pelo trabalho, agora encerrado. Que descanse em paz.