"Havia uma parede grande ainda em pé. Uma espécie de cômodo da antiga clínica. Era nele que ficava o maquinário. Foi ali que eles pegaram a cápsula. Era bem aqui." As lembrançcas do fretista Cesário Augusto Queiroz, 68 anos, ainda estão vivas. "Me lembro como se tivesse acontecido ontem." Desde 1982 trabalhando na praça que fica na esquina das avenidas Tocantins e Paranaíba, poucos estiveram tão perto do embrião de uma tragédia. "Ninguém ia imaginar que aquilo poderia acontecer. Ninguém podia saber."
Nem Cesário imaginava algo do tipo, nem o lavador de carros Lucivaldo Luíz, outra testemunha dos tempos em que o acidente aconteceu. "Estava tudo demolido. Era um buracão. Tinha só um muro baixo e uma grade por cima cercando o terreno. Todo mundo entrava aí", informa, apontando para onde hoje está erguido o Centro de Convenções de Goiânia. Ele concorda: ninguém poderia imaginar. E os catadores Roberto Santos e Wagner Mota também não. Entraram, acharam o equipamento abandonado, levaram-no. A vida de todos eles mudava naqueles instante.
A vizinhança deve ter ouvido os golpes desferidos contra a sólida estrutura, perfurando uma placa protetora de lítio. As primeiras partículas da substância radioativa que continha foram liberadas. "Um deles chamou meu marido para ver o que tinham encontrado. Dizia que era lindo, que brilhava no escuro. Nem ele e nem eu fomos ver. Eu estava cuidando das minhas filhas. Essa foi a decisão que salvou a minha vida e da minha família", reconhece a pedagoga aposentada Marcolina Fernades, 65 anos. Em 1987, ela morava a duas casas do local onde o césio começou a se espalhar.
"Depois nós mudamos da Rua 57. Meu sogro, que era dono de nossa casa, ficou com medo e vendeu o imóvel.." Por ironia, Marcolina, há pouco menos de dois anos, comprou um apartamento que faz divisa com outro ponto condenado pelo acidente, o local onde ficavam o ferro-velho e a residência de Devair Alves. "A cápsula terminou de ser aberta aqui. Aqui a Leide das Neves pegou no césio, aqui a Maria Gabriela morava. Eu as conhecia. Eram uma família honesta, trabalhadora", lamenta, olhando a área concretada no Setor Aeroporto, a três quarteirões do endereço na 57.
O edifício de dona Marcolina foi erguido nos fundos da área. Na frente há duas torres residenciais. Os moradores deste condomínio estacionam seus carros em frente ao lote vazio, olham com desconfiança equipes de reportagem que fotografam e filmam a área, acostumaram-se com técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear fazendo medições regulares dos níveis de radiação no local, mas não gostam de falar a respeito. O porteiro avisa que a síndica deixou um recado: não querem dizer nada. Nas vizinhanças ainda residem pessoas que foram diretamente afetadas pelos efeitos do césio. A memória daquele período duro, para quem o viveu, não pode ser apagada.
O dono da pastelaria mais antiga do Mercado da 74 diz que já não se lembra direito do acidente de três décadas atrás, apesar de os amigos garantirem que ele se recorda de tudo. Talvez também prefira manter publicamente um silêncio que o preserve do trauma. Os comerciantes da região do acidente sofreram muito, passaram por dificuldades, tiveram suas vidas transformadas com a abertura da cápsula. "Eu quebrei", relata o barbeiro Jovino Pereira. "Eu tinha uma loja aqui na 74 e a freguesia sumiu. Acharam uma partícula de césio em frente à minha loja. Agradeço a Jesus não ter sido afetado diretamente. Muitos vizinhos foram."
O proprietário do imóvel alugado por Jovino morreu de câncer. O farmacêutico que atendeu um dos acidentados e era seu vizinho de loja, também sucumbiu à doença. "Ele se chamava Rafael. Ele me contou que um dos catadores foi até a farmácia com a queimadura do césio para que passasse uma pomada. Não sabia como havia adquirido aquele ferimento." Jovino se lembra do então presidente José Sarney no início da Rua 57, em frente ao Mercado, garantir que estava tudo bem. "Mas ele não se aproximou do lugar do acidente. Tirou suas fotos e foi embora." Jovino também foi. Fechou sua loja e mudou-se de país. Retornou para a região alguns anos depois. Retornou, talvez, para poder contar o que viu 30 anos atrás.