Cora é pop

Cora é pop

Foto: Hélio Nunes de Oliveira

Na sua velhice, Cora Coralina gostava de repetir, em versos e conversas, que “vinha do século passado” e que trazia consigo “todas as idades do mundo”. Nascida em 1889, apenas três meses antes da Proclamação da República, a poeta, nesta altura do campeonato, vem do século retrasado, mas nem parece. Ela está mais moderna do que nunca. Vindo de um tempo em que não havia rádio ou TV, em que as tecnologias que habitam nosso cotidiano sequer eram cogitadas, a poesia de Cora, porém, mostra-se perene. As rugas que marcavam o rosto da autora não estão sem seus versos.

As redes sociais fornecem um bom retrato deste fenômeno. Seus versos são citados e repetidos em milhares de postagens, algo que também acontece com outros autores e escritoras, como Fernando Pessoa, Clarice Lispector ou Guimarães Rosa. Suas estrofes de vocabulário simples, libertas de métricas rígidas, sem referências excessivamente eruditas têm conquistado aqueles que preferem consumir conteúdos mais rápidos, que se encaixam bem no estado de espírito do momento de cada internauta. É uma espécie de catarse, em que se compartilha o que se gostaria de ter dito ou escrito.

No Instagram, por exemplo, a hashtag com o nome da autora tem quase 60 mil menções, com vários de seus poemas reproduzidos como se fossem pensamentos sobre os quais se refletir, formas de se desejar bom dia, declarações de amor. Perfis que fazem divulgação da leitura ou dos livros costumam recorrer à lírica de Cora Coralina em seus posts. Livrarias também adoram disseminar os versos da autora goiana como um convite a mergulhar no universo dos livros. Apenas um dos perfis, chamado Cora Coralina Frases, conta com 16 mil seguidores.

Cora, para além das características de seus versos, estimula esse tipo de apropriação, já que suas temáticas dialogam bem com certas bandeiras da atualidade. Quem milita no campo do feminismo costuma mencionar versos de Cora e, sobretudo, sua trajetória pessoal, marcada por rupturas com padrões, enfrentamento de preconceitos e uma visão mais libertária da vida. Blogs ligados aos direitos das mulheres têm em Cora Coralina uma referência, já que ela expressava suas experiências em poesia. Poucos autores são tão autobiográficos como a poeta goiana.

Um dos trechos mais citados é parte do poema Autobiografia, em que ela testemunha: “Sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compressão dos rígidos preconceitos do passado. Preconceitos de classe, preconceitos de cor e de família. Preconceitos econômicos, férreos preconceitos sociais.” Vários estudos acadêmicos abordam essa ligação. No site de busca Google Acadêmico é possível encontrar artigos e estudos nesse sentido, feitos nas maiores universidades brasileiras, algo que já acontecia nas instituições goianas. Sua literatura é cada vez mais debatida e interpretada.

Mulheres fortes
Cora sempre disse que nascera em uma família de mulheres fortes que moldaram sua personalidade, já que a figura masculina da casa, o patriarca Francisco de Paula, morreu apenas um mês e meio após o nascimento de Ana Lins dos Guimarães Peixoto. Caçula na casa com quatro irmãs, Cora achava-se a mais feia das “quatro fulores” de Jacinta, sua mãe. “Três acham logo casamento, uma, não sei não, moça feia num casa fácil”, escreveu ela, reproduzindo comentários ouvidos na infância. Esses episódios colaram-se à sua lírica, compondo-a como elementos essenciais.

Sua vontade de inovar é aventada hoje como uma atitude de vanguarda. Cora expressava isso, contrária a certos tradicionalismos: “Todo o ranço do passado era presente. A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo.” E ela sabia que vivia em um tempo que não lhe daria de bom grado a liberdade que desejava. “Tudo criei, imaginei e defendi nunca foi feito. E eu dizia como ouvia a moda de consolo: Nasci antes do tempo.” O tempo dela parece ser agora. “Aquela gente antiga explorava a minha bobice”, queixava-se.

Páginas em sua homenagem no Facebook contam com cerca de 400 mil curtidas. No Twitter, dezenas de perfis foram criados para divulgar os poemas da escritora. E isso sai do plano virtual e vai para a realidade. “A maior parte do turismo hoje na cidade de Goiás se deve ao Museu Casa de Cora”, afirma Marlene Velhasco, diretora da unidade, sediada no imóvel às margens do Rio Vermelho onde Cora passou sua infância, juventude e para a qual voltou para viver sua velhice. “Todo mundo quer vir aqui.” Até um novo café foi inaugurado no quintal para receber os visitantes.

Na entrada da antiga capital goiana, uma placa anuncia: “a cidade de Cora Coralina”. Mesmo sendo Patrimônio Cultural da Humanidade reconhecido pela Unesco, sede de prédios que contam boa parte da história do Estado, com belas igrejas, obras de arte de enorme valor, com manifestações culturais e religiosas nacionalmente famosas, é a poeta que o grande cartão de visitas do lugar. Um atrativo que seduz os amantes da literatura, mas também outros públicos, sobretudo os mais jovens. “Recebemos muitos estudantes”, comemora Marlene.

A abertura do chamado Caminho de Cora, uma trilha para turistas mais aventureiros e que leva a Goiás, oxigenou o público que vai à antiga Vila Boa interessado nos versos da escritora. “É um outro tipo de turista, mais jovem”. Jovens que também dominam as redes sociais, uma geração digital que possivelmente não tem um livro de Cora em casa, mas conhece seus versos lidos em smartphones. Dos perfis que propagam a obra da poeta, a maioria é de pessoas de gerações recentes, que, por diversos motivos, se identificam com a poeta. De fato, Aninha traz em si todas as idades.

Celebridade no final da vida
Parte da popularidade de Cora Coralina também se dá porque sua poesia passou a ser conhecida por gente famosa. E isso não é de hoje. A autora já escrevia fazia muitos anos, lançara seus principais livros, gozava de certa fama em Goiás e tinha mais de 90 anos de idade quando o poeta Carlos Drummond de Andrade enviou-lhe uma carta datada de 7 de outubro de 1983, chamando a obra Vintém de Cobre de “moeda de ouro”. “É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana”, elogiou o bardo de Itabira.

Com “esse beijo e o carinho” de Drummond, Cora Coralina, no finalzinho de sua vida, foi descoberta pelo restante do Brasil. A chancela do poeta mineiro fez a maior parte das pessoas abrirem os olhos para aquela escritora que também era doceira do interior de Goiás. Daí em diante, no ano e meio de vida que ainda teve pela frente, Cora foi homenageada em universidades e ganhou o Troféu Juca Pato em 1984, eleita, assim, intelectual do ano. E mais pessoas famosas passaram a visita-la, ainda que ela já desfrutasse de certo prestígio nos meios literários.

Na casa de Cora, hoje museu, há registros deste final de vida convivendo com a notoriedade. Na parede, uma foto com a atriz Bruna Lombardi, que desde aquela época não se esqueceu da poeta. Em suas redes sociais, ela costuma saudar a escritora em datas comemorativas, como seu aniversário. Ela é uma das personalidades públicas, com milhares de seguidores, que ajudam a manter viva a poesia de Cora, agora em ambientes digitais, atuando como focos disseminadores de seus versos e alcançando quantidades crescentes de pessoas.

Bruna Lombardi não está sozinha. Outras estrelas da TV fazem o mesmo. A atriz Glória Pires, vez por outra, faz referências a Cora, em mensagens ou mesmo declamando alguns de seus versos. Recentemente, em uma de suas mensagens diárias endereçadas aos seus seguidores, o ator e autor Miguel Falabella usou a poesia de Cora Coralina. A atriz Beth Goulart também costuma compartilhar conteúdos e recomendar perfis que trazem os versos da autora goiana. Os apresentadores César Filho e Regina Volpato gostam de fazer o mesmo em seus perfis pessoais.

Nas redes sociais e na TV
A apresentadora Angélica também é leitora de Cora e já divulgou vários de seus versos em suas redes sociais. No último final de ano, o cantor de samba Péricles interpretou, musicados, os versos de Poesia de Natal, de Cora. “Em cada caixinha, embrulhe um pedacinho de amor, ternura, reconciliação, perdão”, pede ela nos versos. “Enfeite seu interior, sejas diferente, sejas reluzente”, completa. No programa Sr. Brasil, da TV Cultura, o apresentador Rolando Boldrin declamou o famoso poema Oração do Milho, um de seus trabalhos mais emblemáticos. 

Na última temporada da novela teen Malhação, da Rede Globo, a história se passa em um colégio chamado Cora Coralina. Deixa usada pelos autores para incluir nas falas dos personagens vários poemas da escritora, muito homenageada no folhetim vespertino. No programa Como Será?, também da Rede Globo, a apresentadora Sandra Annenberg dedicou parte do tempo à obra da escritora. Ana Maria Braga já abriu sua atração matinal com versos de Cora. E dois anos atrás, a gigante Google fez uma homenagem a Cora, criando um Doodle em sua página inicial de buscas.

A escritora também transita por outras linguagens. Dois filmes sobre sua vida foram produzidos nos últimos anos. No documentário Cora Coralina – Todas as Vidas, do diretor Renato Barbieri, as atrizes Tereza Seiblitz e Walderez de Barros se revezam no papel da escritora. Walderez, aliás, declamou alguns poemas da autora no site da Editora Global, que agora publica a poeta. Já na ficção O Colar, de Reginaldo Gontijo, foi feita uma adaptação do poema O Prato Azul-Pombinho, tendo no elenco Letícia Sabatella. Seus versos também inspiraram o musical A Herança das Pedras. 

Uma exposição fotográfica itinerante, chamada XX: Outras Leituras, traz imagens da autora e de outros nomes femininos da literatura brasileira do século 20, ombreando Cora Coralina a escritoras como Clarice Lispector, Cecília Meireles, Ana Cristina César, Carolina de Jesus e Hilda Hilst, entre outras. Até mesmo a ex-presidente Dilma Rousseff, quando ainda estava no poder, citou versos de Cora em um evento no Palácio do Planalto: “sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores”. Do centro do poder a memes, Cora parece onipresente.

Obras relançadas
Ainda neste ano, a Global Editora, que adquiriu os direitos de publicação da obra de Cora Coralina, será lançado o livro Lembranças de Aninha, um volume de poemas da infância da autora. Este é mais um passo da estratégia editorial do selo paulista na condução da reedição da obra da poeta no mercado. Desde 2015, ela já publicou seis livros da escritora: Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha, Villa Boa de Goyaz, O Tesouro da Casa Velha, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, Meu Livro de Cordel e Estórias da Casa Velha da Ponte. 

Nesta nova fase, a editora colocou no mercado o livro da filha de Cora, Vicência Brêtas Tahan, chamado Cora Coragem, Cora Poesia. Vintém de Cobre, por exemplo, já está em sua 12ª edição e acaba de sair uma nova reimpressão deste que é o livro mais vendido a poeta. Antes, a Global já havia publicado a obra Doceira e Poeta, em que algumas das mais tradicionais receitas culinárias da escritora foram acompanhadas de poemas que ela fez para sua atividade gastronômica. A coletânea Melhores Poemas de Cora Coralina também já estava no mercado pelo mesmo selo.

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Expediente

Edição Multiplataforma
Silvana Bittencout, Fabrício Cardoso, Rodrigo Alves e Michel Victor Queiroz

Reportagem
Rogério Borges

Fotos, Vídeo e Edição
Weimer Carvalho

Edição de Vídeo: 
Rubens Renato Júnior


Design
Marco Aurélio Soares

Arte
André Rodrigues e Luiz Antena
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