“Vazios os armários, seus mistérios desmentidos”. Cora está vasculhando suas lembranças. “As velhas gavetas guardam sempre um refugo de coisas que se agarram às casas velhas e acabam mesmo nos monturos.” Agora, ela passa seu olhar por telhados antigos, por paredes caiadas de branco, por janelas recortadas em pequenos quadrados de madeira. “A gente era moça do passado”. Já não é mais Cora quem arrasta os pés pelos ladrilhos de outros tempos de uma cozinha com geladeira amarela e fogão de lenha com fogo morto. É Aninha que sai à porta, na Rua do Rosário.
“Que procura você, Aninha? Que força a fez despedaçar correntes de afetos e trazê-la de volta às pedras lapidares do passado?” Foi a casa velha na beira do rio, com seu quintal interminável, suas árvores prenhes de frutos? Foi a Ponte da Lapa, defronte ao cruzeiro do Anhanguera, que ouve o murmulhar calmo das águas do Rio Vermelho ou suas enxurradas de trovão que tudo arrastam? O que trouxe você de volta a esta casa onde nasceu há 130 anos e de onde partiu há mais de 25, onde caligrafou sua poesia em cadernos de espiral, onde deixou para trás sua cama estreita e seus livros?
Aninha, Cora, Coralina, todas elas passeiam por onde hoje transitam turistas. É noite alta na cidade de Goiás e o casarão está quase vazio. Só sua dona se apodera de seus cômodos, de seus retratos antigos – a foto do pai morto, o registro de Lampião e Maria Bonita, o respeito a padre Cícero. Cora voltou para espiar a bica d’água no porão, para se surpreender com as pequenas flores que insistem em nascer pelas frinchas de pedra do quintal, para rever velhos inquilinos e de novo sentir o aroma de doces que produzia com tanto ou mais prazer que versos.
A poeta da cidade de Goiás não vai mais deixar sua terra, de onde se afastou por quatro décadas e meia em sua primeira existência. Nesta que vigora agora, em que as pessoas não podem mais vê-la, Cora quer comemorar seu aniversário e festejar, na mesma data, o dia que instituiu para a confraternização dos vizinhos. E quer receber os jovens que chegam em turmas para visitar sua residência. E quer entender as novidades tecnológicas que instalaram em sua sala de leitura e escrita. E quer continuar em nosso imaginário, com poemas que têm gosto de pedras e sementes.
“Os chegantes: ‘Ô de casa’. ‘Ô de fora. Tome chegada, se desapeia’”. Vamos chegando, convida a dona. Vamos entrando, respondemos nós. A poesia como convite, a hospitalidade do interior como hábito, a doçura das caldas mexidas em tacho como sedução, os versos que encantam gerações como motivo. Dá licença, dona Cora. Vamos visitar um pouquinho mais dessa sua vida longa, dessa sua permanência póstuma. “Sou raiz, e vou caminhando sobre as minhas raízes tribais.” E nós a acompanhamos. Sim, aceito seu doce, muito obrigado. Sim, aceito sua poesia, agradecido.