A fazenda, que tem 220 anos de existência, guarda muitos segredos que são verdadeiros tesouros de nosso jeito de fazer comida – e de inventá-la também. Leitora de Câmara Cascudo e sua História da Alimentação, Telma é uma pesquisadora curiosa. Primeiro aprendeu os atalhos da cozinha com sua família. Depois quis saber como eles foram traçados. “Toda nossa culinária tem um pé na aldeia, um pé na senzala”, enfatiza. E, pelo jeito, os dois pés na roça. “Sim, aqui todos os pratos são comidas de roça mesmo, com suas influências de europeus, africanos e muito dos indígenas.”
Nessa conta, Telma calcula que metade de nossa matriz alimentar típica advenha das tribos indígenas que habitavam Goiás antes e durante a colonização. A outra metade fica dividida entre as influências europeias – majoritariamente portuguesa – e algo dos africanos, que têm uma menor participação nessa equação porque não fincaram raízes mais profundas por aqui. “Os escravos negros vieram com a corrida do ouro, mas quando as minas aqui se exauriram, e isso aconteceu num prazo curto, de cerca de 50 anos, eles voltaram para as jazidas de Minas Gerais.”
O modelo de ocupação territorial do interior brasileiro ajuda, na opinião da fazendeira, a entender o que comemos atualmente. “Goiás era muito isolado, antes e depois da exploração do ouro. Isso impediu que outras culturas tivessem uma força muito grande em nossa culinária. Daqui até o litoral, a viagem demorava meses. Os alimentos se perdiam, a farinha apodrecia. Isso tudo moldou nossa alimentação”, pondera. “Outro efeito é que algumas receitas, por esse isolamento todo, foram preservadas, graças a Deus”, acrescenta.
Em sua visão, o extenso uso da mandioca e até o emprego de palhas de milho e folhas de bananeira em pratos e quitutes variados são consequências desse contexto. “Goiás sempre teve uma cultura extrativista quanto à alimentação e isso pode ser visto, por exemplo, no emprego desses materiais e também na importância que os frutos do Cerrado têm em nossa gastronomia”, aponta. No cardápio da Fazenda Babilônia, essas variantes estão muito presentes. “Temos cerca de 30 itens muito específicos aqui e todos vêm do nosso bioma Cerrado, preparados com ingredientes daqui.”
Esse contato direto com os elementos mais básicos é um dos predicados mais festejados por Telma em nossa gastronomia. “Muitas das receitas são embrulhadas em folhas de bananeira e palhas de milho porque não havia embalagens. Os índios sempre fizeram isso com os peixes e nós aprendemos com eles. É o mesmo processo da pamonha. Muito melhor a comida ficar com gosto do milho e da bananeira do que do alumínio ou do plástico”, argumenta. “Essas eram as marmitas dos viajantes, das pessoas que moravam em zonas isoladas. E aqui lutamos para resgatar isso.”
Sucos, geleias, sobremesas e pratos salgados integram essa lista de sabores da terra na Fazenda Babilônia. Telma Lopes cita a matula de galinha. “O preparo desse prato é bem goiano. Primeiro, você precisa correr atrás da galinha caipira no quintal”, brinca. “E tem que ser galinha velha, que tem banha na carne. Dá outro gosto.” Depois que o animal é desossado ainda cru, mói-se a carne junto com alho, toicinho, farinha de milho, açafrão e 2 ou 3 ovos. “Para assar no borralho (as cinzas incandescentes que ficam no fogareiro e que é uma herança indígena) faço uma trouxinha com palha de milho seca, o que me obriga a ter um paiol. Veja que é tudo muito tradicional”, salienta.
O porco, para Telma, também tem que ser caipira, criado solto no quintal. O leite para fazer queijo, requeijão e doces deve ser preparado em seu coalhar natural. A mandioca boa é aquela arrancada no braço, lá nos fundos da casa. “A base alimentar de antes era a mandioca, da qual fazemos também farinha e pão. E ainda por cima não tem glúten”, ressalta. “Nós aqui da Babilônia somos roceiros e essa comida é muito saudável. Tenho quase 70 anos e não tenho nem colesterol alterado. Minha mãe morreu com 92 anos e a vida inteira comeu carne de lata.” Até seus utensílios são quase todos feitos de barro ou madeira.
O interesse por essa gastronomia mais, digamos, “raiz” tem aumentado. A cada fim semana, a Babilônia recebe até uma centena de pessoas para apreciar seu café da manhã e seu almoço típicos. Gente que chega em busca de experiências gastronômicas diferentes, como degustar o cavaco de queijo, preparado com banha de porco, polvilho, queijo ralado e erva doce, embrulhado em folha de bananeira; ou então a broa da casa, feita com fubá de canjica moído em um moinho de pedra. Já o pão de mandioca pode ser acompanhado com uma pasta de jabuticaba ou com uma geleia de mexerica. Tudo com um café sertanejo, servido em bule e xícaras de esmalte. Ê, Goiás!