Memória

Trilhas e encontros do sabor de Goiás

Desbravadores que romperam estes sertões 300 anos atrás ajudaram a
moldar uma culinária repleta de mesclas, em que Europa e África se 
depararam com os ritos alimentares do Cerrado
Quando Bartolomeu Bueno da Silva, o primeiro Anhanguera, chegou aos sertões do interior brasileiro, em 1682, ele trazia mais que a ambição de encontrar minas de metais preciosos, ampliar terras, capturar mão de obra e explorar a natureza. Em sua caravana – além do filho de 12 anos de idade que viria a ser, em 1722, o homem que fundaria o Arraial de Sant'Anna, núcleo embrionário de Vila Boa de Goiás –, aquele bandeirante vindo de terras paulistas carregava seu sustento, um tipo específico de comida. E comida não é só alimento. Ela é, sobretudo, cultura.

Era um primeiro passo para a ocupação definitiva do território e nele os aventureiros do sertão traziam em suas matulas alimentos que já demonstravam uma fusão de culturas. O amendoim e a mandioca, por exemplo, eram produtos que os colonizadores haviam aprendido a cultivar com os indígenas, que os tinham como ingredientes constantes em sua dieta. O milho, muito apreciado pelos povos pré-colombianos, também passou a ser elemento quase obrigatório na culinária nacional logo nas primeiras décadas de ocupação das Américas.
Bolinho de milho

Alimentos Salgados

Segundo o sociólogo e historiador Sérgio Buarque de Holanda, quando as bandeiras paulistas rumaram Goiás e Mato Grosso adentro, a principal preocupação era com maneiras de garantir o abastecimento. Os alimentos eram salgados para suportar grandes viagens. Além da carne - preparada previamente em locais em que já existia alguma atividade agropecuária e utilizada em pratos que incluíam feijão, esses exploradores caçavam durante suas jornadas. Foram montados, ainda, pontos de apoio e pouso, onde cultivavam roças incipientes de alimentos básicos.

Uma lei de 1707 obrigava que os bandeirantes formassem lavouras, ainda que temporárias, nessas idas ao sertão para que pudessem se sustentar durante as jornadas. Isso estimulou que muitos grãos fossem introduzidos nessas regiões, como o feijão e o arroz (a dupla dinâmica de nossa mesa cotidiana). Paralelo a isso, porcos e galinhas foram trazidos para servir de alimento e formar plantéis nos aglomerados iniciais dos exploradores. No livro História de Goiás, Zoroastro Artiaga diz que animais silvestres, peixes e palmitos ajudavam a completar essa dieta um tanto improvisada.

A História que nos explica

Abrindo picadas, enfrentando onças, atravessando rios bravios, guerreando com povos indígenas nunca contactados, os exploradores sobreviviam da forma como podiam. E isso não era nada fácil. Essas bandeiras realizadas pelo interior brasileiro integravam uma decisão política e econômica. Jazidas de ouro e diamantes estavam sendo encontradas em Minas Gerais e Bahia e as colônias espanholas a oeste eram notoriamente ricas em metais e pedras preciosas. O vácuo entre as duas regiões, os sertões divididos pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494, precisavam ser ocupados.

Rendados da história

No tempo em que os bandeirantes rumaram para o interior, a cultura nacional já era o resultado de intensas misturas. A imigração europeia para cá, principalmente a portuguesa, estava consolidada. Incursões de outros povos da Europa, como os franceses no Maranhão e os holandeses em Pernambuco, além da ocupação do Rio de Janeiro no século 16 por tropas da França – auxiliadas por indígenas, no episódio conhecido como Confederação dos Tamoios – deixaram marcas. Esse rendado de referências era acrescido com o desenvolvimento da navegação pelo litoral brasileiro.

Junte-se a isso o tráfico de escravos da África, iniciado ainda no século 15. Calcula-se que até 6 milhões de cativos chegaram ao Brasil vindos de várias regiões do continente (Moçambique, Congo, Angola, Nigéria), incrementando, de forma definitiva, todos os setores de nossa cultura, incluindo a alimentação. No fim do século 17, também já havia uma relação (pacífica ou hostil) dos colonizadores com muitos povos indígenas que se localizavam nas regiões litorâneas. É com esse cenário – e essa bagagem – que os bandeirantes chegaram por aqui.

Tudo junto e misturado

Manga com leite faz mal? De acordo com a sabedoria popular, sim! Não come isso não, menino! Mas na formação de nossa gastronomia, os estômagos eram menos sensíveis. A manga, que veio da África e se adaptou tão bem ao nosso clima tropical, e o leite, produzido a partir de pequenos rebanhos de gado criados inicialmente em mosteiros de religiosos fundados nas profundezas do sertão, eram apenas uma das possibilidades. O Cerrado fornecia frutos, castanhas, folhas que foram incorporados a outras tradições culinárias. Uma espécie de “junta tudo e come”.

Isso explica, em parte, o fato de algumas de nossas receitas mais tradicionais serem resultados dessas experiências menos ortodoxas na cozinha. O amendoim e a mandioca são ingredientes que, tomados aos indígenas, harmonizaram bem com outros elementos. Castanhas, como o baru, emprestaram sabores peculiares a determinadas receitas, enquanto a mandioca – seja cozida, seja com a farinha que dela se extrai – forneceu à nossa gastronomia pratos como a matula, receita em que a massa deste alimento ajuda a engrossar um caldo com vários tipos de carne.
Matula
Misturar a carne de diversos animais é outra tendência de nossa gastronomia e que vem desde seus primórdios. Se o bandeirante trouxe a técnica da carne salgada e de pedaços embebidos em banha para sua conservação, os indígenas caçavam e comiam o alimento ainda fresco. Junte essas duas influências e temos verdadeiros emblemas de nossa boa mesa. Quem é de fora costuma brincar que no empadão goiano vão vários animais diferentes: lingüiça de porco, frango, carne bovina... Tudo isso junto e misturado com produtos do Cerrado, como a guariroba, e até europeus, como a batata.

Fazer pratos com muitos ingredientes é a lógica de nossas panelinhas, mexidões em que sempre cabe mais alguma coisa. Elas reúnem ingredientes de incontáveis origens e com preparos versáteis.

Temporada do Pequi

O próprio arroz com pequi nosso de cada ano – na temporada de coleta do fruto, este prato não pode faltar – denota essa tendência de promover uniões da culinária goiana. Amarela-se o arroz branco não com açafrão, mas com o fruto que dá aos montes no Cerrado e que tem a mística de pegar muita gente desprevenida com mordidas mal calculadas.

A polpa do pequi refogado é também um tempero poderoso, de sabor marcante. Esses pratos, servidos com uma boa carne de acompanhamento – pode ser o leitão a pururuca dos mineiros ou o charque dos nordestinos –, são irresistíveis.
Pequi

Pé na roça, pé na aldeia

A comida típica goiana tem, entre suas características principais, a criação de 
pratos e outras delícias que adaptam sabores e texturas, de preferência com muita fartura
No fogão de lenha, a brasa está acesa. No amplo ambiente da cozinha, os cheiros inebriantes já podem ser sentidos. No varandão em frente dá para ver o gado pastando. Uma galinha escandalosa anuncia ao longe que botou mais um ovo e um leitão zanza pelo cercado, bisbilhotando cada palmo de chão. Um sol manso ilumina a longa mesa de madeira de lei, de tempos antigos como muitos dos métodos ali empregados e que ajudam a resgatar tradições culinárias que Goiás criou, mas que foi, aos poucos, perdendo na maior parte dos lugares.

“Vamos tomar um café”, convida Telma Lopes Machado, proprietária da Fazenda Babilônia, uma das propriedades rurais mais emblemáticas de um tempo em que Goiás viu nascer considerável parte de sua gastronomia típica. O lugar próximo a Pirenópolis, cuja sede é um casarão secular que já foi cenário até de novela, carrega a missão de não deixar certas receitas morrerem. “Eu comecei este trabalho há 20 anos. É um turismo pedagógico. Vêm muitas escolas para visitar e aprender”, detalha a dona, uma cozinheira de mão cheia, bisneta do homem que comprou a propriedade, na época com inacreditáveis 11 mil alqueires, do comendador Joaquim Alves de Oliveira, em 1864.
Telma Lopes
A fazenda, que tem 220 anos de existência, guarda muitos segredos que são verdadeiros tesouros de nosso jeito de fazer comida – e de inventá-la também. Leitora de Câmara Cascudo e sua História da Alimentação, Telma é uma pesquisadora curiosa. Primeiro aprendeu os atalhos da cozinha com sua família. Depois quis saber como eles foram traçados. “Toda nossa culinária tem um pé na aldeia, um pé na senzala”, enfatiza. E, pelo jeito, os dois pés na roça. “Sim, aqui todos os pratos são comidas de roça mesmo, com suas influências de europeus, africanos e muito dos indígenas.”

Nessa conta, Telma calcula que metade de nossa matriz alimentar típica advenha das tribos indígenas que habitavam Goiás antes e durante a colonização. A outra metade fica dividida entre as influências europeias – majoritariamente portuguesa – e algo dos africanos, que têm uma menor participação nessa equação porque não fincaram raízes mais profundas por aqui. “Os escravos negros vieram com a corrida do ouro, mas quando as minas aqui se exauriram, e isso aconteceu num prazo curto, de cerca de 50 anos, eles voltaram para as jazidas de Minas Gerais.”

O modelo de ocupação territorial do interior brasileiro ajuda, na opinião da fazendeira, a entender o que comemos atualmente. “Goiás era muito isolado, antes e depois da exploração do ouro. Isso impediu que outras culturas tivessem uma força muito grande em nossa culinária. Daqui até o litoral, a viagem demorava meses. Os alimentos se perdiam, a farinha apodrecia. Isso tudo moldou nossa alimentação”, pondera. “Outro efeito é que algumas receitas, por esse isolamento todo, foram preservadas, graças a Deus”, acrescenta.

Em sua visão, o extenso uso da mandioca e até o emprego de palhas de milho e folhas de bananeira em pratos e quitutes variados são consequências desse contexto. “Goiás sempre teve uma cultura extrativista quanto à alimentação e isso pode ser visto, por exemplo, no emprego desses materiais e também na importância que os frutos do Cerrado têm em nossa gastronomia”, aponta. No cardápio da Fazenda Babilônia, essas variantes estão muito presentes. “Temos cerca de 30 itens muito específicos aqui e todos vêm do nosso bioma Cerrado, preparados com ingredientes daqui.”

Esse contato direto com os elementos mais básicos é um dos predicados mais festejados por Telma em nossa gastronomia. “Muitas das receitas são embrulhadas em folhas de bananeira e palhas de milho porque não havia embalagens. Os índios sempre fizeram isso com os peixes e nós aprendemos com eles. É o mesmo processo da pamonha. Muito melhor a comida ficar com gosto do milho e da bananeira do que do alumínio ou do plástico”, argumenta. “Essas eram as marmitas dos viajantes, das pessoas que moravam em zonas isoladas. E aqui lutamos para resgatar isso.”

Correr atrás da galinha

Sucos, geleias, sobremesas e pratos salgados integram essa lista de sabores da terra na Fazenda Babilônia. Telma Lopes cita a matula de galinha. “O preparo desse prato é bem goiano. Primeiro, você precisa correr atrás da galinha caipira no quintal”, brinca. “E tem que ser galinha velha, que tem banha na carne. Dá outro gosto.” Depois que o animal é desossado ainda cru, mói-se a carne junto com alho, toicinho, farinha de milho, açafrão e 2 ou 3 ovos. “Para assar no borralho (as cinzas incandescentes que ficam no fogareiro e que é uma herança indígena) faço uma trouxinha com palha de milho seca, o que me obriga a ter um paiol. Veja que é tudo muito tradicional”, salienta.

O porco, para Telma, também tem que ser caipira, criado solto no quintal. O leite para fazer queijo, requeijão e doces deve ser preparado em seu coalhar natural. A mandioca boa é aquela arrancada no braço, lá nos fundos da casa. “A base alimentar de antes era a mandioca, da qual fazemos também farinha e pão. E ainda por cima não tem glúten”, ressalta. “Nós aqui da Babilônia somos roceiros e essa comida é muito saudável. Tenho quase 70 anos e não tenho nem colesterol alterado. Minha mãe morreu com 92 anos e a vida inteira comeu carne de lata.” Até seus utensílios são quase todos feitos de barro ou madeira.
Produtos Fazenda Babilônia
O interesse por essa gastronomia mais, digamos, “raiz” tem aumentado. A cada fim semana, a Babilônia recebe até uma centena de pessoas para apreciar seu café da manhã e seu almoço típicos. Gente que chega em busca de experiências gastronômicas diferentes, como degustar o cavaco de queijo, preparado com banha de porco, polvilho, queijo ralado e erva doce, embrulhado em folha de bananeira; ou então a broa da casa, feita com fubá de canjica moído em um moinho de pedra. Já o pão de mandioca pode ser acompanhado com uma pasta de jabuticaba ou com uma geleia de mexerica. Tudo com um café sertanejo, servido em bule e xícaras de esmalte. Ê, Goiás!
Pão de mandioca, geleia de mexirica, pasta de jabuticaba

Não pode faltar comida

Impossível passar em frente à casa de Ranulfo Jayme Sobrinho na Rua Aurora, em Pirenópolis, e não ouvir sua voz ou sentir o odor de comida que emana de lá. Na frente, uma placa em madeira avisa: é o restaurante do Padre Rosa. Uma casa goiana, com certeza. “Aqui não falta comida de jeito nenhum”, garante, em altos brados, o proprietário. “Essa é uma promessa que fiz ao meu pai. Se o bufê furar, fecho o restaurante na hora.” O pai de Ranulfo era João Jayme Joaneto, homem valente e que chegou a trilhar o caminho da política, mas que gostava mesmo era de cozinhar.
Restaurante do Padre Rosa
“Meu pai cozinhou para Juscelino Kubitschek e para Pedro Ludovico. Ele e Pedro chegaram a brigar, mas depois morreram amigos. Conheço a família do Pedro inteira”, diz o proprietário, enquanto, num tacho generoso à sua frente, vai preparando uma ambrosia, justamente o doce dos poderosos em Goiás. “Aqui eu faço muitos doces e pratos salgados, todos da cozinha típica goiana. São mais de 40 doces, a maioria com frutos do Cerrado”, anuncia, apontando para outro panelão, este cheio de cajuzinhos em calda, já prontos para o consumo.

O Padre Rosa é famoso pela quantidade abundante de comida servida. E também por algumas outras particularidades, a começar pelo nome do restaurante. Trata-se de uma homenagem a um clérigo nascido em São João Del Rey, Minas Gerais, que teve um final trágico, mas que antes salvou algumas almas, entre elas a do pai de Ranulfo. “Meu pai enfrentou 11 júris. Em um deles, em que havia matado um sujeito, ele fez uma promessa a Padre Rosa. Se absolvido fosse, nunca mais andaria armado, abriria um restaurante e nele padre nunca pagaria a conta.”

A promessa foi cumprida em 1952, já depois da morte do padre, quando a casa foi aberta. “E eu mantenho a palavra: padre aqui não paga, não importa quantos sejam. Um dia teve uma conferência e vieram comer uns 50 padres aqui. Ninguém pagou.” A família numerosa também é bem-vinda. “Meu pai teve 23 filhos com 11 mulheres diferentes. Nesse Natal deve vir umas 50 pessoas comer aqui durante três dias. Já estou preparando as leitoas, os perus, tudo”, anuncia Ranulfo, que tem na esposa, Marilena Fleury Gomes, uma companheira de cozinha. “Ela cozinha bem demais”, elogia.
Ranulfo Jayme
Esta fartura é uma marca que, segundo Telma Lopes, da Fazenda Babilônia, define o jeito goiano de lidar com a comida. “Antes passavam tropas e pediam pouso nas fazendas. Ali era oferecido uma janta. Por isso as cozinhas mais tradicionais têm sempre alguma coisa mais ou menos pronta para servir”, explica. “Aqui eu faço comida para 10, mas a quantidade dá para comer 15. Não pode faltar. Uma das primeiras perguntas que fazemos a uma visita é se já almoçou”, exemplifica. E não falta. O bolo sobre a mesa, a panela quente no fogão, o doce na geladeira. Fome, ninguém há de passar.

Expediente

Produção digital
Arenusa Goulart
Aline Marques

Edição multiplataforma
Silvana Bittencourt
Fabrício Cardoso
Michel Victor
Frank Martins
Rodrigo Alves

Capa
Ramon Madeira
Kleverton Carvalho

Edição de arte
André Rodrigues

Edição de imagens
Weimer Carvalho

Reportagem
Rogério Borges

Fotografias
Diomício Gomes
Weimer Carvalho

Projeto gráfico impresso
André Rodrigues
Lúcio Rodrigues

Projeto gráfico digital
Ramon Madeira
Marco Aurélio Soares

Artes e infográficos
André Rodrigues
Luiz Antena
Eric Kaji

Audiovisual
Ana Helena
Rubens Renato Júnior
Diomício Gomes

Tratamento de imagens
Deivison Moura

Front-end
Bruno Kratka
Euler Lobo
Jordão Barroso
Rafhael Oliveira

Design e Ilustração
Marco Aurélio Soares
Ramon Madeira

Share by: