Na casa de dona Augusta Soares – que está “beirando os 80”, como ela mesma diz –, a mesa da sala está sempre servida com verdadeiros tesouros para o paladar. O doce de limão recheado, em que limõezinhos galegos são abertos e preenchidos com doce de leite, é um dos destaques. “Demoro até três dias para fazer”, informa a doceira. Quando se aposentou como professora de português, ela decidiu que não ficaria parada. Foi fazer, de maneira mais séria, o que era um hobby. “É um jeito de matar o tempo. Eu sempre fiz doce. Via minha irmã fazer e aprendi.”
Augusta Soares
Há 15 anos ela mantém essa rotina, passando horas ao lado das panelas e tachos e outro bom tempo recebendo os turistas, ávidos para experimentar seu trabalho. “Vem muita gente de Brasília. Os paulistas compram bastante. Já recebi até grupos de japoneses.” Uma de suas especialidades é a flor de coco, pequena obra de artesanato montada com tiras de coco coladas com calda açucarada. “Eu faço de várias cores. Derreto a anilina e pinto com pincel”, revela. Dá até dó de comer esse docinho bonito e delicado. Mas não tenha! É bom demais!
“Eu faço de várias cores. Derreto a anilina e pinto com pincel”
Com qualquer doceira que se converse em Goiás, a resposta é sempre a mesma: “eu aprendi porque minha família toda fazia”. Segundo dona Sílvia Curado, que faz os delicados alfenins (outro doce muito representativo da antiga capital goiana), há uma tradição na área que passa de geração para geração. “Minha avó dizia que são bens da terra. A gente sabe fazer”, resume. Doces que podem incluir os traços mais marcantes da cozinha lusitana, como também a mistura de referências que caracteriza a gastronomia goiana. A junção de sabores, porém, é perceptível e bem trabalhada.
Silvia Curado
Dona Augusta Soares, Rita de Cássia e a até mesmo a doceira mais famosa da Cidade de Goiás, a poeta Cora Coralina, têm algo em comum: aprenderam vendo, experimentando, criando opções para seus próprios métodos de lidar com os ingredientes. “Eu adoro fazer doce, mas não como muito”, confessa Augusta. “Se bem que quando fiquei diabética, passei a comer mais doce.” Opa! O quê? “Minha diabetes é camarada”, disfarça. É mesmo difícil resistir a tantos sabores únicos, tantos odores convidativos, tantas texturas sedutoras. Em termos de doces, Goiás é uma perdição.
"Jamais ociosas. Focadas, imensas, ocupadas Mãos laboriosas Abertas sempre para dar, ajudar, unir e abençoar."
Trecho do poema Estas Mãos,
de Meu Livro de Cordel, de Cora Coralina
“Não sou uma ex-doceira. Sou uma doceira e considero melhores meus doces do que os meus versos.” Na cozinha da antiga casa da poeta às margens do Rio Vermelho, na Cidade de Goiás, esta frase dá a dimensão da importância daquele cômodo. “Era aqui que ela passava a maior parte do tempo”, diz Marlene Velasco, diretora do Museu Casa de Cora, responsável pela administração do imóvel secular da Rua do Rosário e que se transformou num verdadeiro chamariz de visitas da antiga capital goiana. Ali, doces e versos se confundem, como Cora Coralina gostava que fosse.
Marlene Gomes
Os manjares preparados pela escritora são tão famosos quanto suas estrofes. Ambos criados com a autenticidade e com a carga de vivências que ajudam a compor o estilo da poeta, sem fórmulas, mas com enorme participação de sua intuição. Os doces, no cotidiano dessa mulher que lançou seu primeiro livro já com 66 anos de idade, têm papel ainda mais fundamental que sua criação literária. “Quando ela voltou à Cidade de Goiás em 1956, depois de passar 45 anos fora daqui, quem lhe deu sustento foi sua produção de doces. Ela viveu só disso por 15 anos”, informa Marlene.
Depois que ficou famosa, sendo publicada por uma grande editora e arrancando elogios de gente do quilate de Carlos Drummond de Andrade, a rotina de doceira de Cora Coralina só fez aumentar. Quem chegasse à porta de sua casa, poderia vê-la sentada em uma poltrona, recortada pela luz que vinha de seu amplo quintal, fornecendo o perfil clássico de uma senhora do interior à espera de visitas. E nenhuma delas saía de mãos abanando. Dados ou vendidos, seus doces se espalhavam pela Cidade de Goiás, por todo o Estado e, depois da notoriedade, por várias partes do País.
Casa de Cora
“Tudo está mantido como ela deixou”, garante Marlene. Lá está a poltrona onde Cora se sentava, com a muleta que passou a usar na velhice encostada ao lado. Lá estão os caprichados e singelos aparelhos de jantar de seu casarão herdado dos pais. Na cozinha, o fogão a lenha, com as panelas e os tachos com os quais dava vazão ao seu talento de doceira. Também estão em seus cantos o pilão de arroz, o moedor de café, as conchas, a geladeira antiga. Até as manchas nas paredes causadas pela fumaça permanecem. Os doces da poeta é que não estão mais ali. Por enquanto...
Casa de Cora
“Em janeiro vamos inaugurar o Café Cora no quintal aqui da casa, que vai servir docinhos e quitandas tradicionais da Cidade de Goiás. Os doces cristalizados vão seguir as receitas que Cora deixou”, comemora Marlene. Esses pequenos segredos foram passados pela poeta a um de seus bisnetos, que hoje vive em São Paulo. As receitas estão contidas no livro Cora Coralina, Doceira e Poeta, editado sob os cuidados de sua única filha viva, Vicência Bretas, que hoje tem mais de 90 anos de idade. A ideia é fazer da parte externa do museu um outro polo de atração cultural.
Marlene Velasco se empolga com esse projeto, já que ele estabelece uma ponte entre o passado e o futuro. Os doces de Cora Coralina desafiam quem tenta reproduzi-los. “Não eram apenas cristalizados, eram grasnados. O açúcar que havia neles vinha muito mais das próprias frutas”, aponta a diretora do museu. Frutas colhidas nos fundos da casa. Cajus, laranjas da terra, figos, limões, mamões. “Ela começou fazendo doces em calda, que são para consumo mais rápido. Depois que passou a comercializar, precisou fazer cristalizados, mais apropriados para viagens.”
O uso que Cora Coralina fazia de seu imenso quintal também é uma tradição na Cidade de Goiás. “Eles são divididos em três partes”, ensina Marlene. “A primeira parte é das flores, a segunda é das hortaliças e a terceira é a do pomar, das árvores frutíferas.” Depois de preparados os doces, a poeta fazia questão de pesá-los em uma balança de precisão e embalá-los em caixas, com papel celofane. “Meu Deus, ainda me lembro do cheiro daqueles doces maravilhosos”, assegura Marlene, que desde criança conviveu com Cora. Seus pais eram vizinhos de porta da escritora. “Eu vinha aqui e roubava uns docinhos dela. E ela sabia disso”, diverte-se. E quem não faria o mesmo, hein?
Mel e rapadura
A chegada das bandeiras paulistas ao sertão goiano abriu outras possibilidades agridoces para a região. O melado da cana-de-açúcar, já bastante cultivada no Nordeste e um produto popular em todo o litoral brasileiro, ajuda a contar um pouco a história desse contato. O sociólogo Gilberto Freyre, no livro Açúcar, lista 108 doces preparados com o ingrediente. Nada menos que 95 deles trazem técnicas de preparo herdadas, vejam vocês, de povos indígenas. Para as grandes viagens pelos sertões, um dos produtos mais utilizados era a rapadura, que adoçava e dava energia.
Os indígenas já eram peritos no uso do mel de abelhas. As matas virgens do Cerradão do Planalto Central eram pródigas em colmeias. As duas formas de extrair doçura da natureza conviveram e não se excluíram no decorrer do tempo. A rapadura sempre foi muito popular nos fazendões do interior goiano, muitas delas com produção própria, mesmo que artesanal. O mel batizou até feira nas ruas de Goiânia. Não é possível pensar uma gastronomia com tantos doces sem que haja fontes de onde se tirar esses sabores.