Uma fábrica de fé

Uma fábrica de fé

Na Fazenda da Mata, pertinho de Damolândia, um senhor de 60 anos de idade esculpe num tronco de madeira. “Ele precisa ter as voltas certas para a gente poder fazer a canga”, informa o homem, enquanto arranca lascas de uma tora levemente curvada em arco. É um angico, do qual ele retira com um enxó a casca grossa típica de uma árvore do Cerrado e, devagar, lhe empresta a forma de uma das peças mais importantes de um carro de boi. Outros oito troncos aguardam, em frente à sua casa, a habilidade deste construtor do veículo mais emblemático da Festa do Divino Pai Eterno.

Reis Gonçalves Pimenta tem pouco prazo para dar conta de tanto serviço no mês que antecede a romaria de Trindade. Três semanas antes de os devotos iniciarem a jornada de três dias em carros de boi de Damolândia à capital da fé do Centro-Oeste, ele estava às voltas com as oito cangas, um eixo quebrado de outro carro e os preparativos para seu próprio meio de transporte. “Nós temos esse carro de boi há 19 anos, mas ele foi comprado. No total, esse carro tem mais de 50 anos”, calcula Maria José Mendonça Gonçalo, 54 anos, esposa de Reis Gonçalves e também devota do Pai Eterno.

Esse casal tem em comum a mesma fé que os motiva a manter a tradição da romaria de Trindade, todos os anos, sem falhar nunca. Na verdade, o trajeto é feito mais de uma vez por ano. “Nós juntamos comida, donativos e levamos à Vila São Cotolengo, sempre de carro de boi. Só neste ano, fomos duas vezes”, revela Reis. A ida a Trindade na Festa do Divino Pai Eterno e a participação no desfile dos carros de boi não é um sacrifício, portanto. “A gente adora. Sente felicidade quando a festa começa”, define esse carreiro que há 45 anos é presença confirmada na celebração.

Sua fábrica e oficina improvisadas ficam debaixo de dois frondosos pés de cajá-manga no quintal, que fica nos fundos de uma velha casa de fazenda. “Essa casa aqui deve ter mais de 80 anos. Essa terra é do meu pai e minha mãe, quando era moça, morou aqui”, relata Maria José. Ali, um eixo de carro que Reis acabou de terminar aguarda ser colocado no lugar da peça de madeira quebrada. Um outro carro, que foi fabricado recentemente, espera seu dono vir reivindicá-lo. “Mas ele sumiu”, queixa-se Reis. “É que ele ficou doente”, explica Maria José.

Quem sabe uma promessa ao Divino Pai Eterno devolva a saúde ao cliente assim como fez com um dos filhos do casal. “O menino adoeceu, ficou ruim. Mas a gente prometeu que se ele se salvasse, a gente levava todo ano ao pé do Divino Pai Eterno. E agora ele vai sempre com a gente”, conta Reis. Adriano hoje é adulto, assim como as duas outras filhas do casal, Adrielly e Elódia, esta última mãe há apenas três meses. Alice nasceu em uma família de carreiros e os avós prometiam levá-la à festa para agradecer seu nascimento com saúde. “A família sempre vai reunida”, orgulha-se o patriarca.

Esta é uma operação que exige planejamento. Os bois da junta – 12 animais da raça gir – são amansados com quatro meses de antecedência. “Todos os dias a gente passeia com eles no pasto para irem se acostumando”, ensina Reis. Os alimentos para a jornada são comprados um mês antes de seu início e Maria José, responsável pelas refeições da turma, coloca a mão na massa uma semana antes da partida. “A gente faz a carne recheada e coloca na manteiga. Não perde. E os biscoitos e bolos, eu faço faltando três dias para nossa ida a Trindade”, descreve.

Eles fazem parte da “turma da sexta-feira”, pessoal que sai na primeira sexta da festa e gosta de mais tranquilidade nos pousos – dois entre Damolândia e Trindade. “São mais de 70 carros de boi que saem todo ano e a gente precisa dividir para não tomar conta dos asfaltos”, explica Reis, afirmando que na viagem encontram motoristas que fazem festa ao passar por eles e outros que se irritam com o tráfego pouco habitual dos bois. “Tem gente que joga o caminhão em cima da gente”, reclama. Da pinguinha para esquentar as noites frias à lona para cobrir o carro, nada é esquecido.

Mas esquecer não é um verbo muito conjugado por este casal. Basta entrar na casa em que moram. “Parece a Sala dos Milagres de Trindade”, brinca Maria José. Os muitos quadros de romarias passadas, em que os carros de boi são protagonistas, dão mesmo essa impressão. Eles também têm vários álbuns de fotos tiradas por amigos que os acompanham nas viagens a Trindade. Na parede, duas cabeças de gado. Uma delas é da vaca gir Jiboia, com seus chifres retorcidos. “Foi um presente da minha bisavó”, detalha a dona da casa. A outra é do boi caracu Domado, carreiro de primeira.

Na Fazenda da Mata, pertinho de Damolândia, Reis e Maria José vivem juntos há 35 anos, amando a terra onde nasceram e fiéis à religião que aprenderam a professar. Ele, aos 60 anos, esculpe na madeira – bálsamo, angico, feijão-cru para a eixo; jacarandá para a canga; pequizeiro, sucupira para as rodas – sua arte que tira da natureza um som inconfundível. “O carro precisa cantar”, adverte. Ela, com lenço do Divino Pai Eterno na cabeça e um sorriso bondoso no rosto, cuida de sua morada com porcos, perus, cabras e galinhas d´Angola. Ambos sob a proteção do Divino Pai Eterno.

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Expediente

Edição Multiplataforma
Silvana Bittencout, Fabrício Cardoso, Rodrigo Alves e Michel Victor Queiroz

Reportagem
Rogério Borges

Edição de fotografia
Weimer Carvalho

Arte
André Luiz Rodrigues

Design
Marco Aurélio Soares

Audiovisual
Carmem Curti
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