Ela conhece bem o vírus

Cristiana Toscano - 49 anos - pesquisadora e professora (UFG e OMS))
 

Autoridade mundial em vacinação, Cristiana Toscano dedica seus esforços para os avanços da ciência no combate à Covid, mas sabe que solução passa pela melhoria das atitudes humanas

O câmpus da Universidade de Yale, uma das mais importantes do mundo, viu uma história de amor nascer mais de cinco décadas atrás. Vicente, vindo do interior paulista e filho de italianos, foi para os EUA fazer um pós-doutorado em Química. Lá, conheceu Patrícia, norte-americana que cursava seu mestrado em Enfermagem. Eles se apaixonaram, se casaram, tiveram os dois primeiros filhos por lá e decidiram vir para o Brasil para dar prosseguimento a suas vidas. Ambos sabiam que o Brasil precisava da atuação de quem pudesse fazer a diferença na ciência e na saúde. Aqui nasceram mais dois filhos, entre os quais Cristiana Toscano.


“Acho que herdei tudo isso dos meus pais”, brinca Cristiana, que representa hoje esse duplo esforço (ciência e saúde), totalmente voltado contra a Covid-19. Professora da UFG há dez anos, quando se mudou para Goiânia acompanhando o marido engenheiro que é daqui, Cristiana é uma autoridade internacional na luta global contra a pandemia. Integrante dos comitês de crise para a Covid em Goiânia e em Goiás, ela é membro da Câmara Técnica de Apoio de Imunização e é a única latino-americana a estar do Grupo Estratégico Internacional de Experts em Vacinas e Vacinação da Organização Mundial de Saúde (OMS).


Cristiana, portanto, é uma das pessoas que estão na vanguarda do acompanhamento das pesquisas sobre vacinas e variantes do vírus em todo o mundo. “Há muito tempo trabalho em ações de prevenção e mitigação de epidemias e pandemias de doenças infecciosas pelo planeta”, conta. “Foi com esse olhar que encarei a Covid desde o início, de como os países deveriam se estruturar para enfrentar esse desafio. Medidas de mitigação, estruturas hospitalares e outras ações. Quando as primeiras notícias sobre o novo vírus vieram da China, um aluno me perguntou na sala se ele chegaria ao Brasil. Eu respondi: ‘Sem dúvida!’”


Essa certeza que a pesquisadora tinha e que, ela admite, assustou os estudantes com quem falava, deve-se a uma larga experiência. “Trata-se de uma doença de transmissão por vias respiratórias, com disseminação rápida e inevitável. É um tipo de micro-organismo com capacidade pandêmica. Há muitas pesquisas com o vírus influenza, um vírus gripal. É uma dinâmica parecida”, compara. É prudente ouvir seus conselhos. Ela trabalha com imunização há mais de duas décadas, com passagens, entre outros locais, pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, o CDC, de Atlanta, referência mundial na área.


Com mestrado em Doenças Infecciosas e Parasitárias pela Universidade de São Paulo e doutorado em Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição onde também fez pós-doutorado em Avaliação de Tecnologias em Saúde, Cristiana integra estudos desenvolvidos, por exemplo, pela Organização Mundial da Saúde e pela Organização Pan-Americana de Saúde. Ela também se especializou em Economia da Saúde pela Universidade de York, no Reino Unido. Um conhecimento amplo colocado a serviço de um único objetivo no último ano. “Meu dia é 100% Covid. E estou preocupada”, reconhece.


Antes de conversar com o POPULAR, Cristiana participou de uma reunião dos cinco grupos de modelagem que fazem projeções sobre o avanço da pandemia no Brasil. “Estamos no pior momento e nas próximas duas ou três semanas será bem difícil”, previne. Esse é um trabalho incessante, mas que muitas vezes acaba prejudicado graças a decisões equivocadas. “O Brasil se destaca por alguns motivos. É um país emergente, de dimensões continentais, com sistema público de saúde universal, muito populoso. Isso tudo coloca o País numa situação singular. Há sempre a expectativa em relação ao Brasil, de como ele vai liderar. E estão todos surpresos.”


Cristiana destaca que o Brasil tem um histórico de promoção de imunização, com um programa de vacinação muito forte, referência mundial. “Mas hoje o País está numa situação contrária, na contramão de outras nações do mundo. As pessoas não estão entendendo. Perguntam o que aconteceu”, revela. “O vírus e suas variantes são desafios, mas o mais importante é que a ciência embase as atitudes dos políticos, considerando os aspectos da saúde, da educação, da economia. Essas atitudes precisam ser transparentes, articuladas com todos os setores da sociedade. É esse elo que está faltando. Todos os erros que já cometemos continuam.”


A pesquisadora já teve a chance de lidar com vários momentos em que a saúde coletiva esteve em sério risco, em âmbito continental e até global. Ela recorda, por exemplo, quando trabalhou no combate à pandemia de H1N1, pouco mais de dez anos atrás, e na luta contra surtos importantes de ebola, sarampo, cólera em várias partes do mundo. “No século passado, o mundo viveu três grandes pandemias com o vírus influenza e neste século houve outra. Desde então, houve um avanço incrível nas pesquisas sobre vacinas. Estas, contra a Covid, são as que tiveram o desenvolvimento mais rápido da história. Foram criadas em dez meses”, elogia.


Todo esse desenvolvimento, porém, não garantiu que a pandemia se tornasse uma verdadeira hecatombe planetária. “Foi aprovado em 2005 o Regulamento Sanitário Internacional, com a criação de estruturas de preparação para enfrentamento de pandemias na maior parte dos países. Temos hoje vários pontos de monitoramento e eles funcionaram. Mas mesmo assim poderíamos ter feito um trabalho melhor. Enquanto humanidade, não estamos conseguindo fazer frente”, avalia. “Há falhas ainda presentes. Falta uma estrutura supranacional apolítica e financiada para dar conta disso. Há uma desigualdade grande. Há países ainda sem vacina.”


No cenário de escassez de imunizantes e diante de políticas estabelecidas por laboratórios farmacêuticos, Cristiana assinala que a questão da saúde pública nunca deveria ser encarada com o olhar ideológico. “Isso atrapalha a tomada de decisões de maneira articulada com várias instituições nacionais, em instâncias de gestão, com uma comunicação eficiente junto à população para obter apoio às medidas necessárias. Todas elas são duras, não tem jeito.” Ver a situação de forma mais contextual é um dos objetivos quando se fala em saúde pública. “Até o sentido da palavra epidemiologia vem dessa ideia de distribuição coletiva.”


Essa vontade de lidar com políticas públicas de saúde sempre esteve presente nos projetos de Cristiana Toscano, mas ela precisou de tempo para compreender isso melhor. “Sempre busquei esse caminho, para poder ajudar mais pessoas. Hoje tenho facilidade maior para mapear isso. Naquela época, em minha juventude, isso não era tão claro para mim. Eu tinha dúvidas se queria fazer Fisioterapia, Psicologia e ao mesmo tempo adorava música. Pensei, então, em fazer Musicoterapia. Meus pais me orientaram então a cursar Medicina, que era algo mais amplo. Depois eu escolheria onde atuar, por qual caminho seguiria.”


Ela revela que seu teste vocacional indicou dois cursos diferentes daquele pleo qual optou, mas talvez menos distantes do que podem parecer à primeira vista. “Segundo o teste, eu tinha vocação para Relações Internacionais e Comunicação. O engraçado é que minha carreira internacional acabou me levando para essas áreas mesmo”, brinca. Mas, já inserida no meio médico, outra fase de sua vida definiu de vez seu destino. Eu fiz um estágio durante a faculdade numa área de comunidade indígena na Amazônia para promoção da saúde. Gostei demais e soube, com certeza, de que era aquilo que eu gostaria de fazer.”


Em seguida, Cristiana fez residência em infectologia e seu primeiro emprego, já formada, foi atendendo em uma UTI especializada em doenças infecciosas no Hospital das Clínicas de São Paulo. “Eu tratava muitos pacientes com tétano, que tem uma letalidade alta depois que a pessoa é infectada. Mas não há justificativa para tanta gente morra de tétano se já existe, há tanto tempo, uma vacina eficaz, tomada de dez em dez anos, e muito barata. A vacina custa centavos. Ao contrário, pessoas perdiam a vida ou ficavam até 30 dias internadas em uma UTI porque não tomaram uma precaução tão simples. Por isso voltei meu olhar para a prevenção.”


Uma carreira vitoriosa que ela soube conciliar com a maternidade e com a vida familiar. Ela tem dois filhos, de 8 e 12 anos, e procura estar presente. “Eu acho que as crianças hoje têm uma consciência até maior do que os adultos sobre o respeito ao próximo”, acredita. Crianças? Até mesmo o de 12 anos? “Não, espera, eu sou cientista e nós definimos um critério científico para dizer o que é adolescência”, explica, ao risos. “Mas falando sério, minha perspectiva de futuro, para além de avançarmos na ciência, é melhorarmos nesse respeito mútuo, de solidariedade. Não adianta eu só me proteger e não proteger o próximo. É um caminho que temos que trilhar.”


Cristiana reconhece que a palavra “esperança” parece difícil de ser pronunciada agora, mas que é necessário persistir. “Para manter a sanidade a gente precisa priorizar as coisas que fazem a vida valer a pena. Família, relacionamento, pessoas que lhe são próximas. Isso é fundamental para atravessar essa crise”, aconselha. “Tenho de ter esperança para continuar levantando todo dia.” E para ajudar nessa tarefa, muita leitura. Ela está lendo agora o romance Homens Imprudentemente Poéticos, do autor português Valter Hugo Mãe, e uma biografia da rainha lusitana d. Maria II. “Adoro História, para não repetirmos os mesmos erros do passado.”

Expediente

Edição Multiplataforma
Silvana Bittencout, Fabrício Cardoso, Rodrigo Alves e Michel Victor Queiroz

Reportagem
Rogério Borges

Fotos, Vídeo e Edição
Weimer Carvalho

Edição de Vídeo: 
Rubens Renato Júnior


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