Ela tem uma vocação

Anna Eugênia - 25 anos - Médica (HCamp) 

Mesmo depois de ter sofrido uma perda familiar para a doença, a médica Anna Eugênia dedica-se ao cuidado das vítimas da Covid até mesmo em seus dias de folga

Anna Eugênia Villela Martins Naves sempre quis fazer Medicina, mas ela não poderia imaginar que, quando se formasse, o mundo viveria a maior pandemia em um século e que sua trajetória, pessoal e profissional, seria marcada definitivamente por isso. “Eu me formei no início de 2020 pela PUC Goiás e já em maio estava trabalhando no Hospital de Campanha contra a Covid, em Goiânia”, conta. “Em enfermaria, como prescritora, esse é o meu primeiro emprego como médica.” Desde então, uma mistura intensa de sentimentos, de momentos alternados de força e fragilidade, passaram a fazer parte de sua vida. Até mesmo um drama familiar aconteceu.


Ela esteve no HCamp, pela primeira vez, para levar um tio seu, Sebastião Naves Jr., para fazer o teste de Covid-19. Ele apresentava sintomas que se agravavam. “Eu também já tinha contato com colegas que atuavam no hospital.” A condição do irmão de seu pai se deteriorou e ele morreu em junho, quando a sobrinha já recebia novos pacientes na enfermaria do HCamp, tratando de quem não estava em estado crítico e encaminhando os casos mais graves para unidades de terapia intensiva. “Meu tio morreu na sexta e na segunda-feira eu estava atendendo. Foi um momento muito duro, mas eu tinha de manter o foco nos meus pacientes.”


Esse compromisso continua acompanhando a jovem médica. Ela trabalha no HCamp de segunda a sábado, o que não quer dizer que não apareça por lá com frequência aos domingos também. “Cada um de nós fica responsável por dez pacientes por vez e eu tenho a tendência de me apegar às pessoas, a quem estou cuidando. Então, geralmente, quando tenho uma meta terapêutica para aquela pessoa, um procedimento que julgo importante em sua recuperação, eu gosto de fazer eu mesma, de acompanhar de perto esse processo. Por isso eu vou para o hospital em dias em que não estou trabalhando para fazer isso.”


Essa é uma postura que Anna acredita ser fundamental no enfrentamento de uma doença que causa, além da infecção, uma imensa solidão em suas vítimas. “Eu tive muita sorte porque meu curso enfatizou muito esse lado humano. Isso me garantiu mais preparo para lidar com as situações de agora”, avalia. “A gente perde pacientes e isso é muito doloroso. Muitas vezes, a gente não tem tempo de processar nem mesmo as nossas próprias dores, nossos lutos pessoais. Sabemos que não vamos ganhar todas as lutas, mas precisamos fazer o que for possível. Aquelas pessoas também dependem do meu trabalho e faço de tudo para salvá-las.”


Anna tem dado atenção aos efeitos colaterais criados pelas circunstâncias que a Covid traz. “O paciente fica muito sozinho, sem a família. Isso cria uma ansiedade muito grande em quem está internado e em quem está de fora, aguardando notícias. Sempre que posso, faço essa ponte, que é importante. Transmito recados e mensagens, mas há uma equipe específica para isso, com psicólogos, que conversam com os pacientes, que fazem chamadas de vídeo para a família, que tentam contornar essa solidão de todas as formas. E isso tem repercussões importantes no próprio tratamento. Eles precisam saber que estamos cuidando deles.”


A angústia de quem sabe que vai ser intubado porque sua situação clínica piorou é um dos pontos mais delicados. E isso não afeta só o doente. “Acho que posso falar pela maioria dos meus colegas: estamos cansados, exaustos. Nossos momentos de descanso são raros”, desabafa. Mas há compensações, episódios que revigoram o ânimo. “Uma história me marcou. Um paciente veio da UTI para a enfermaria, depois de 30 dias intubado, traqueostomizado. E há um mês ele não se sentava, não via a luz do dia. Eu e a família o ajudamos a se sentar e ele pôde ver a janela. A vista nem era bonita, mas era o bastante para ele. Foi incrível.”


Para lidar com essa montanha-russa entre perdas e alegrias, às vezes efêmeras, Anna conta com o apoio total dos colegas de jornada do próprio HCamp, do noivo e da família. “Converso muito com os psicólogos do hospital, com meus companheiros de trabalho. Não é uma terapia formal, mas funciona”, atesta. Já em casa, ela se preocupa em seguir rigorosamente os protocolos de segurança. “Eu moro com meus pais e tenho um irmão que tem uma síndrome do espectro autista. Preciso ter muito cuidado para não colocá-los em risco. Não uso em casa roupas que tenha utilizado no hospital, quando tenho algum sintoma suspeito, eu me isolo.”


Já o noivo Matheus Borges, que é advogado, precisou ter compreensão. Afinal, o planejamento para a cerimônia de casamento dos dois também está sob risco por conta da pandemia. “Antes de tudo isso, nós marcamos o casamento para junho deste ano. Quem poderia imaginar o que aconteceria. Depois, a gente pensou que haveria tempo suficiente para as coisas melhorarem, mas já houve tantas previsões que deram errado”, admite. “O problema é que a gente prevê o comportamento do vírus. Este a gente consegue acompanhar. Mas não prevemos o comportamento das pessoas e por conta disso estamos hoje numa situação pior”, critica.


Católica, Anna tem rezado para conseguir manter as energias. Além disso, em seus momentos de folga, gosta de cultivar o hábito da leitura. “Mas eu acabo lendo algo ligado à medicina, mesmo quando é ficção”, ri. “Nesse momento, estou lendo o livro O Comitê da Morte, de Noah Gordon, que conta a história de um grupo que toma decisões sobre transplantes.” E além disso? “Assisto algumas séries.” Quais séries? “Séries médicas...” Sim, ela própria admite que a vocação que abraçou está em todas as partes. “Não é só uma profissão, é um propósito de vida. Sempre tive a certeza de que queria me dedicar a amenizar esse sofrimento.”


Ainda na faculdade, ela quis se especializar em infectologia. Fez internato no Hospital de Doenças Tropicais e agora está vivendo um intensivão não só nessa área específica, mas em todas as outras que os atendimentos requerem. Ela tem um lema para fazer com que seu trabalho seja o melhor possível. “Uma frase na graduação me marcou e eu a coloco em prática. O médico deve dominar todas as técnicas, mas para tocar uma alma, só outra alma humana. A empatia é o que importa. Já pensei várias vezes que não conseguiria continuar nessa luta contra a Covid, mas persisto. Não vou dar as costas aos meus pacientes.”

Expediente

Edição Multiplataforma
Silvana Bittencout, Fabrício Cardoso, Rodrigo Alves e Michel Victor Queiroz

Reportagem
Rogério Borges

Fotos, Vídeo e Edição
Weimer Carvalho

Edição de Vídeo: 
Rubens Renato Júnior


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Arte
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