Ela enfrenta o medo

Jovelina Maria Ribeiro - 50 anos - Técnica de higienização

Atuando diariamente na higienização de UTIs no Hospital de Campanha de Goiânia, Jovelina Maria não recua diante do que considera sua missão há um ano: ajudar quem tanto precisa

Depois de dois anos desempregada, Jovelina Maria Ribeiro soube de uma oportunidade que mudaria sua vida, sobretudo seu olhar sobre ela. “Uma amiga me indicou para a empresa que presta o serviço”, conta. Isso já faz um ano. E que ano viveu essa mulher de 50 anos, que nunca, jamais, havia trabalhado com limpeza; que nunca, jamais, havia batido ponto em um hospital. “Eu já fui vendedora, telefonista, recepcionista, vendi sitpass em terminais de ônibus, mas nunca tinha feito o que estou fazendo agora”, relata a atual técnica em higienização de UTIs do Hospital de Campanha para Enfrentamento do Coronavírus de Goiânia, o HCamp.


“Não tenho medo de trabalhar aqui”, avisa. “Nunca tive medo de pegar a doença, mas tive medo de transmitir para alguém. Ainda tenho”, afirma. Jovelina, assim como todo o pessoal que atua na unidade, já recebeu as duas doses da vacina contra a Covid-19. “Eu sempre confiei na presença de Deus para nos proteger, para a gente não se preocupar com nada.” Uma confiança que nem todos têm, dadas as circunstâncias. “Muitos que entraram junto comigo não continuaram. Saíram. E muitos deles já podem ter pego a doença. Eu não. Para começar, fico tranquila. Conto com a proteção de Deus e com todos os cuidados que tomamos aqui.”


E haja cuidados para evitar contaminações em um ambiente onde o vírus circula. “Todos os dias, a gente espera as equipes darem banho nos pacientes e depois nós lavamos os quartos com desinfetantes feitos para hospitais mesmo, que matam os vírus e as bactérias todas. Quando um leito é desocupado, a gente lava tudo. A gente higieniza a cama, as paredes, o teto, o chão.” Trabalho minucioso que exige um aparato igualmente rigoroso. “A gente chega no hospital, muda de roupa, coloca um unissex, que é uma blusa e uma calça especiais. Por cima, vem um capote, com mangas longas. Aí vêm luvas, duas toucas, máscara e óculos.”


Não pode haver o mínimo descuido nesse ritual e Jovelina reconhece o esforço para que a doença não vença todas as batalhas. “Fico no hospital das 7 às 19 horas, com uma hora de intervalo para o almoço e 20 minutos para o lanche à tarde. Enquanto estou lá na UTI, não posso tirar essa roupa de jeito nenhum.” Consciência de quem sabe integrar uma engrenagem de trabalho árduo, que exige muito de quem está nessa linha de frente. “A gente também faz varredura nas UTIs, recolhendo tudo o que é necessário depois dos procedimentos.” Fraldas, curativos, roupas de cama usadas. Nada pode ficar ali por mais tempo do que o necessário.


Nesse cenário, em que há tanto sofrimento e luta contra a morte, Jovelina consegue enxergar o que há de belo no esforço de todos em prol da vida. “É o céu aqui na Terra e as pessoas que trabalham aqui são anjos. Os enfermeiros, os médicos são uns amores, cuidam das pessoas doentes muito bem”, elogia. É uma rotina dura, mas que traz compensações. “Eu fico muito feliz quando vejo alguém saindo curado do hospital. É muito bom ver a vitória dessas pessoas. Eu até mantenho contato com algumas delas.” Quanto àquelas que não tiveram a mesma sorte... “Eu não presenciei muitas mortes não, graças a Deus. Mas é triste demais.”


Também para pedir por sua proteção e pela saúde de quem está sob tratamento intensivo, Jovelina sempre faz uma oração antes de entrar no trabalho. Antes disso, porém, encara três conduções - “com ônibus lotados” - para chegar ao Hospital de Campanha. “Eu moro em Senador Canedo. Pego o primeiro ônibus às 5 horas, no meu bairro, o Setor Flor do Ipê. Daí vou para o Terminal do Novo Mundo e pego outro ônibus, até o Terminal Isidória. Daí é que pego o ônibus para o hospital.” Duas horas para ir, duas para voltar, mas ela não reclama. “Eu sei que aquelas pessoas precisam de mim de alguma forma. Por isso fico satisfeita em trabalhar.”


Essa assistência não se dá apenas quanto à higienização dos ambientes. Uma das facetas mais tristes dessa doença é a solidão a que ela condena suas vítimas. Com visitas proibidas, os doentes se veem sozinhos num leito de hospital, lidando com a saudade da família e com o medo do futuro. Sempre que pode, Jovelina tenta amenizar essa dor. “Quando vejo que a pessoa abriu um pouquinho o olho e estou limpando o quarto, eu digo: ‘Oi, estou cuidando de você. Todo mundo está cuidando de você aqui. Vai dar tudo certo’. Converso com quem está intubado também. Digo que estou limpando para tirar todo o mal que existe ali.”


Uma palavra de conforto e de otimismo que pode fazer toda a diferença para quem está envolvido no desespero do adoecimento. Palavra que Jovelina precisou direcionar para pessoas próximas. Recentemente, há cerca de duas semanas, sua família perdeu uma amiga querida. “Foi internada, mas não resistiu, coitada.” Isso fez com que sua preocupação com sua mãe, de 82 anos de idade, aumentasse. “Hoje, o meu filho, que tem 28 anos, está morando com ela, para ajudar a cuidar. Ela mora na Vila Moraes, em Goiânia. Mas eu nunca deixei de ir na casa dela durante a pandemia. Tomei todos os cuidados e ela, graças a Deus, não pegou.”


Um colega de trabalho, algum tempo atrás, também foi infectado e continua em tratamento. Já alguns vizinhos, que pegaram, conseguiram se recuperar, incluindo uma senhora de 94 anos de idade. É com os casos positivos que Jovelina prefere se apegar e é deles que tira lições. “Depois desse um ano trabalhando no hospital, eu me sinto uma pessoa melhor. Eu tenho mais energia positiva que antes. Eu me enxergo hoje menos agitada e mais tranquila do que era. Acho que foi porque eu não sabia que tinha esse dom de cuidar das pessoas e eu descobri isso em mim. Eu me sinto muito bem ajudando aqueles doentes.”


Esse cuidado transferiu-se para fora dos leitos de UTI e foi para sua vida pessoal. O marido de Jovelina é vendedor e eles têm apenas um filho, que é estudante de Direito. “Ao cuidar de quem está internado, vendo a solidão daquelas pessoas, eu passei a querer ficar mais perto ainda da minha família, de quem eu amo.” Ela admite que houve quem se afastasse de sua casa com medo de conviver com quem trabalha tão perto do perigo, mas compreende. O medo não lhe é um sentimento estranho. Jovelina o vê todos os dias no olhar dos pacientes, mas não sucumbe ao temor. “A gente tem de enfrentá-lo”, diz, cheia de esperança.

Expediente

Edição Multiplataforma
Silvana Bittencout, Fabrício Cardoso, Rodrigo Alves e Michel Victor Queiroz

Reportagem
Rogério Borges

Fotos, Vídeo e Edição
Weimer Carvalho

Edição de Vídeo: 
Rubens Renato Júnior


Design
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Arte
André Rodrigues e Luiz Antena